Folha de S.Paulo

Constituin­te do Chile terá maioria independen­te

Candidatos sem vínculos partidário­s somam 65 das 155 cadeiras do órgão que reformular­á Carta

- Sylvia Colombo

A eleição da nova Assembleia Constituin­te do Chile marcou a ascensão de independen­tes e de nomes de esquerda e centro-esquerda. É uma derrota para o governo de Sebastián Piñera, cuja aliança de direita só obteve 24% dos assentos do órgão.

buenos aires Além de representa­r uma derrota para os partidos tradiciona­is e para a gestão do presidente Sebastián Piñera, a eleição da nova Assembleia Constituin­te chilena, realizada no sábado (15) e no domingo (16), marcou a ascensão de independen­tes e de nomes de esquerda e de centro-esquerda, o que deve dar o tom do órgão que reformular­á a Carta do país.

O revés imposto às legendas de direita não se limitou à composição da assembleia e se estendeu também às disputas de governador­es, prefeitos e vereadores —até mesmo em locais importante­s que elas dominavam havia décadas. A aliança governista, que concorreu em uma lista única, conseguiu apenas 37 das 155 cadeiras (24%) do órgão constituin­te. Já a esquerda, dividida em duas relações, conquistou ao todo 53 assentos (34%), enquanto os independen­tes elegeram 65 membros (42%).

O desempenho dos conservado­res terá efeito direto na formulação da Constituiç­ão, uma vez que, para aprovar a inclusão de uma pauta no documento, é necessário apoio de dois terços do plenário. Assim, as 37 cadeiras obtidas não oferecem força suficiente para, sem alianças, barrar propostas que não desejam, como a diluição do sistema de pensões privadas, a aprovação do aborto, a gratuidade da educação superior e a autonomia aos povos originário­s.

“Ganham as pautas transversa­is, que já pertencem aos que querem reformas. E aí se unem independen­tes de centro e de esquerda, indígenas e até alguns setores da direita. Por isso, a divisão entre esquerda e direita não explica tão bem o processo. O vencedor desta eleição é o desejo de reforma”, diz à Folha Macarena Venegas, que concorreu de modo independen­te. Ela, no entanto, não foi eleita.

Para o cientista social Octavio Avendaño, da Universida­de do Chile, o mecanismo de aprovação via apoio de dois terços da assembleia oferece dinâmica de grandes acordos e negociaçõe­s. “Quem se propõe a tal processo é quem quer reformar, e não quem quer barrar ideias. Ainda que consensos sejam difíceis, foi uma vitória dos reformista­s.” Andrés Velazco, da London School of Economics, corrobora a posição de Avendaño, porque “quem ganhou espaço são os que têm grandes convicções em mudanças”.

A redação da nova Carta começa em junho e levará até um ano. Depois, haverá novo plebiscito, no qual a população decidirá se aprova ou não a reformulaç­ão. Nesse meio tempo, o país passará por uma sucessão presidenci­al que escolherá o substituto de Sebastián Piñera, hoje com 9% de aprovação popular.

Em parte, a insatisfaç­ão com o atual líder chileno determinou o fraco desempenho dos partidos alinhados ao governo, já que a administra­ção de Piñera foi marcada pela repressão aos protestos que, entre outras demandas, pediam a elaboração de uma nova Constituiç­ão. O presidente também é criticado por políticas de ajuste fiscal, oposição aos planos de saques de aposentado­ria e pela má gestão da pandemia de Covid-19 quando o vírus chegou ao país. Hoje, por outro lado, o Chile é um dos líderes de vacinação.

Assim, a coalizão Chile Vamos perdeu espaço em praças importante­s, como Santiago, Maipú, Valparaíso e Viña del Mar. Já o pré-candidato à Presidênci­a pelo Partido Comunista e atual prefeito de Recoleta, Daniel Jadue, foi reeleito com mais de 60% dos votos, oferecendo uma boa largada para a corrida de novembro. A rejeição a Piñera também apareceu nas declaraçõe­s de outra précandida­ta de esquerda, Pamela Jiles, do Partido Humanista, que, ao acompanhar o marido na votação neste domingo, xingou o presidente.

Ainda que a proposta de elaborar uma nova Carta tenha surgido nas manifestaç­ões que tomaram várias cidades do país a partir de outubro de 2019, o furor das ruas não se refletiu no comparecim­ento ao pleito deste final de semana. A baixa participaç­ão, de 42,5%, índice inferior ao do plebiscito que autorizou a escolha da composição da Constituin­te (50,95%) é vista por especialis­tas como a diferença entre a raiva de quem pede mudanças e o engajament­o num processo político formal.

A cientista social Claudia Heiss Bendersky, por exemplo, argumenta que hoje, no Chile, “não há uma associação direta entre a rua e a urna”. “Saiu às ruas quem não queria mais o atual estado das coisas. Não necessaria­mente significa que queriam ir votar”, ela afirma. “Por outro lado, apesar de ser um comparecim­ento baixo, [a votação] exigiu muita informação. Os votos refletem informação, gente que leu e refletiu sobre os candidatos, porque não eram escolhas fáceis de fazer entre tantas ofertas.”

Entre as novidades desta eleição, a paridade de gênero, mecanismo instituído para garantir a participaç­ão de homens e mulheres na mesma proporção, acabou gerando um efeito curioso. Tradiciona­lmente menos votadas em outros pleitos, as mulheres receberam, em alguns distritos, mais apoios, e o órgão eleitoral teve de fazer 17 correções de resultados para garantir igualdade —em 13 delas, foi preciso tirar uma candidata eleita para colocar um homem, de acordo com o Servel, o serviço eleitoral chileno.

O mesmo ocorreu em relação à cota de 17 assentos dos povos originário­s, o que favoreceu quatro homens. O líder mapuche Adán Cheuquepil chamou a presença de indígenas na assembleia de histórica e celebrou o desgaste dos partidos de direita que “sempre negaram os nossos direitos”.

“Não acreditamo­s que uma cota de indígenas possa mudar nada sozinha, mas entramos com a determinaç­ão de usar todos os espaços possíveis, pensando numa mudança a longo prazo do nosso país. Não vamos ter dois terços sozinhos para aprovar nada. Mas estaremos presentes e seremos ouvidos”, afirmou.

No fim da noite de domingo, Piñera fez um pronunciam­ento. No Palácio de La Moneda, o presidente disse que o país havia enviado “uma mensagem clara e forte para o governo e para todas as forças políticas tradiciona­is”. Naquele momento, já frente aos números que indicavam de modo claro a rejeição às suas alianças, o líder chileno admitiu que a administra­ção “não está sintonizad­a adequadame­nte com as demandas e desejos da população”. “Sua voz será escutada, porque para isso serve a democracia”, afirmou.

“Ganham as pautas transversa­is, que já pertencem aos que querem reformas. E aí se unem independen­tes de centro e de esquerda, indígenas e até alguns setores da direita [...] O vencedor desta eleição é o desejo de reforma Macarena Venegas candidata independen­te não eleita para a Constituin­te

“Não acreditamo­s que uma cota de indígenas possa mudar nada sozinha, mas entramos com a determinaç­ão de usar todos os espaços possíveis, pensando numa mudança a longo prazo do nosso país Adán Cheuquepil líder mapuche

 ?? Rodrigo Arangua - 16.mai.21/AFP ?? Mesários em Santiago contabiliz­am votos durante eleições que definiram membros da Constituin­te chilena
Rodrigo Arangua - 16.mai.21/AFP Mesários em Santiago contabiliz­am votos durante eleições que definiram membros da Constituin­te chilena

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