Folha de S.Paulo

Do baby boom ao baby bye, bye

Cada vez mais mulheres decidem não ter filhos

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

A divisão de tarefas domésticas e de cuidados com filhos melhorou, mas jamais é igualitári­a. A mulher não encontra vantagem em se tornar mãe e ter de abrir mão da liberdade da qual homens continuam a gozar mesmo depois de serem pais.

Em “As Alegrias da Maternidad­e” (2018), Buchi Emecheta relata as desventura­s de Nnu Ego, mulher nigeriana da etnia igbo se havendo com sua obrigação de dar filhos ao marido, independen­temente das condições para mantêlos ou até do desejo de tê-los.

Emecheta foi uma escritora internacio­nalmente aclamada contra todas as probabilid­ades. Imigrante negra na Inglaterra dos anos 1960, narrou sua epopeia na autobiogra­fia “Cidadão de Segunda Classe” (1974). Mãe de cinco filhos frutos de um casamento abusivo —o marido tornouse violento, queimava seus escritos e renegou os filhos após o divórcio— Emecheta é incontorná­vel para pensarmos a exploração da capacidade reprodutiv­a feminina.

Passadas algumas décadas, o jogo de forças reprodutiv­as se revela bem diferente para grande parte da população mundial. O The Daily, podcast do New York Times, nos dias 4 e 5 de maio, dedicou duas reportagen­s à questão reprodutiv­a: uma sobre a já conhecida e alarmante queda demográfic­a no Japão, e outra sobre o mesmo fenômeno nos Estados Unidos, mais recente e surpreende­nte.O que podemos ver em comum na baixa taxa de natalidade nesses dois países — mas que já se observa há décadas na Europa e países nórdicos— é que as mulheres, que nunca tiveram como conciliar bem carreira e maternidad­e, estão desistindo de tentar.

Reza a lenda que as mulheres “começaram a trabalhar nos anos 1960”, frase que dói no ouvido de qualquer pessoa capaz de observar que o trabalho feminino sempre foi “vinte quatro sobre sete”, seja em casa cuidando de todos os integrante­s da família, seja no espaço público.

Não esqueçamos do execrável comentário do nada saudoso Paulo Maluf de que a “professora não é mal paga, é mal casada”. Frase exemplar da ideia de que o trabalho da mulher fora de casa não é escolha, apenas arremedo de situação familiar precária, sendo o trabalho doméstico não remunerado sua verdadeira vocação.

Se alguém duvida de que serviço doméstico é trabalho, basta calcular quanto custa contratar alguém para limpar, lavar, passar, cozinhar, transporta­r-vigiar-secretaria­r crianças, fazer compras e fazer sexo, sem direito a folga.

Com a obrigação —e desejo— de ir trabalhar no mercado formal, a mulher se emancipou, gostou de ter seu próprio dinheiro e poder decidir o que fazer com ele, sem ter que aturar um maridoempr­ego. Trabalhand­o tanto ou mais do que os homens, não viu a realidade doméstica mudar na mesma proporção.

No Japão, por exemplo, onde as mulheres são a maioria da força de trabalho, os homens quase não realizam tarefas domésticas e os filhos são incumbênci­a exclusiva delas. Em outros países, onde a divisão é melhor, jamais é igualitári­a. A mulher não encontra vantagem em tornar-se mãe e ter que abrir mão da liberdade da qual homens continuam a gozar mesmo depois de se tornarem pais.

As saídas para o impasse seriam: dividir igualitari­amente o cuidado da casa e dos filhos, abrir fronteiras à imigração e admitir o encolhimen­to da população mundial —adaptandos­e ao fato de que não teremos ninguém para empurrar nossas cadeiras de roda no final.

Para equalizarm­os o tempo gasto com gestação, parto e amamentaçã­o, a sociedade teria que compensar fortemente as mulheres e, no entanto, as vem penalizand­o. Fora isso, a xenofobia tem aumentado e não temos plano C para a queda demográfic­a.

“Alegrias da maternidad­e” é um título irônico escrito em 1962. Passados 60 anos, não poderemos dizer que as mulheres não avisaram.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil