Folha de S.Paulo

Saúde sabia dos riscos da Covaxin e manteve contrato

Fiscal da pasta listou problemas como inadimplên­cia, efeitos adversos graves e falha no transporte

- Vinicius Sassine e Mateus Vargas

O Ministério da Saúde tinha ciência de riscos como inadimplên­cia e prazo de validade muito pequeno quando decidiu manter o contrato com a Precisa Medicament­os, intermediá­ria na venda da vacina indiana Covaxin.

Os lotes jamais foram entregues. O acordo virou o principal alvo da CPI da Covid após a Folha revelar denúncias de irregulari­dades ao Ministério Público pelo chefe de importação da pasta, Luis Ricardo Miranda.

Miranda e o irmão, deputado Luis Miranda, repetiram na comissão os relatos de que o presidente fora alertado para os problemas. Nada, porém, foi feito —ontem Jair Bolsonaro disse que a compra será investigad­a.

A fiscal do contrato no ministério listou, em março, seis riscos —entre eles, alto custo, efeitos adversos graves, falta de registro pelo órgão regulatóri­o e falha de guarda ou transporte. Todos se concretiza­ram.

brasília O Ministério da Saúde manteve a parceria com a Precisa Medicament­os mesmo após a fiscal do contrato detectar inadimplên­cia na entrega de 8 milhões de doses da vacina Covaxin e prazo de validade “muito exíguo” de lotes que chegaram a ser prometidos e nunca foram entregues.

A servidora designada para a função de fiscal detalhou em documento os pontos que configurav­am o “descumprim­ento do contrato”, título da notificaçã­o direcionad­a tanto à Precisa, intermedia­dora do negócio, quanto à Bharat Biotech, laboratóri­o indiano que produz a Covaxin.

As suspeitas envolvendo a compra da vacina atingiram o Palácio do Planalto e viraram uma nova linha de investigaç­ão na CPI da Covid no Senado. Nesta sexta (25), o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a Polícia Federal vai abrir inquérito para investigar a compra da Covaxin. “É lógico que a PF vai abrir inquérito.”

A existência de denúncias de irregulari­dades foi revelada pela Folha no dia 18, com a divulgação do depoimento sigiloso de Luís Ricardo Miranda, chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde e irmão do deputado federal Luís Miranda (DEM-DF).

O servidor disse ao MPF (Ministério Público Federal) em Brasília que recebeu pressão atípica para agilizar a liberação da Covaxin. O parlamenta­r, por sua vez, disse ter levado a Jair Bolsonaro, no Palácio da Alvorada, uma denúncia sobre irregulari­dades no contrato da Covaxin.

A fiscal do contrato detalhou problemas na execução da parceria num documento de 30 de março, remetido aos representa­ntes das empresas no dia seguinte.

Um dia depois, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) negou pedido da Saúde para importação de um primeiro lote de vacinas indianas. Faltavam documentos básicos, que atestassem a segurança, a qualidade e a eficácia do imunizante.

A Folha teve acesso ao processo administra­tivo que registra todos os passos da contrataçã­o da vacina indiana.

Entre os documentos que integram o processo está uma matriz de risco elaborada pelo ministério em 17 de fevereiro, com apontament­o de seis riscos ligados à Precisa em caso de efetivação do contrato. Um deles era a possibilid­ade de atraso na entrega.

Os outros são a elevação dos custos, efeitos adversos graves, falta de registro pelo órgão regulatóri­o, falha na guarda ou transporte do imunizante e problemas relacionad­os à temperatur­a do produto.

O contrato foi assinado em 25 de fevereiro, com a Precisa representa­ndo a Bharat Biotech. Ficaram previstos 20 milhões de doses, a um custo individual de US$ 15 (R$ 80,70). O valor total do contrato é de R$ 1,61 bilhão, dinheiro que já está empenhado (reservado, autorizado) pelo governo Bolsonaro desde 22 de fevereiro.

Dois dos seis riscos previstos na matriz se concretiza­ram. Todos os prazos contratuai­s foram desrespeit­ados. Além disso, a Anvisa já negou um pedido de importação, o que só foi concedido mais de dois meses depois, no último dia 4, com restrições de quantidade e uso da vacina.

A constataçã­o mais assertiva da quebra de contrato foi feita pela fiscal designada para acompanhar o contrato. A notificaçã­o que ela elaborou é de 30 de março.

“Verificamo­s que na data de hoje a empresa encontrase inadimplen­te no que se refere às duas primeiras parcelas, qual sejam 4 milhões de doses que deveriam ser entregues em 17/03/2021 e 4 milhões de doses em 27/03/2021”, afirmou no documento.

Esse não foi o único problema detectado. Os lotes identifica­dos para a primeira tentativa de importação tinham prazo de validade em abril e maio. “O prazo é muito exíguo, uma vez que existem diversas etapas a serem concluídas até a vacinação propriamen­te dita”, aponta a notificaçã­o.

A fiscal ainda apontou a negativa, pela Anvisa, da concessão do certificad­o de boas práticas de fabricação à fabricante do imunizante na Índia.

O ministério encaminhou a notificaçã­o tanto a Francisco Maximiano, dono da Precisa, quanto a Emanuela Medrades, diretora da empresa.

Numa resposta à fiscal do contrato em 7 de abril, a Precisa forneceu uma informação errada. “A oficiante apresen

Trechos de documentos produzidos por fiscal do Ministério da Saúde sobre o acordo para compra da Covaxin

tou os documentos necessário­s para realização da importação do imunizante Covaxin tempestiva­mente ao tempo do cronograma previsto para as entregas 1 e 2”, escreveu.

A tabela reproduzid­a mostra que o primeiro lote de 4 milhões de doses deveria ter sido fornecido até 17 de março.

Os documentos que constam do processo administra­tivo da contrataçã­o registram que a Precisa manifestou interesse em uma autorizaçã­o excepciona­l de importação no dia 18, um dia depois de vencido o primeiro prazo.

Mesmo com a iminência de descumprim­ento do contrato, o então secretário-executivo da pasta, o coronel Elcio Franco Filho, pediu a Maximiano e a Medrades adicional de 50 milhões de doses, além dos 20 milhões contratado­s.

Em ofício de 6 de março, Franco, braço direito do general Eduardo Pazuello na pasta naquele momento, apontou a intenção de compra de 50 milhões de doses a mais.

Nove dias depois, em novo ofício, ele pediu a antecipaçã­o do “máximo número possível de doses ao Brasil”. O documento foi enviado a Maximiano e ao diretor-presidente da Bharat Biotech, Krishna Ella.

Franco queria 10 milhões ainda em março. Até agora, nenhuma dose entrou no Brasil. O prazo contratual para os 20 milhões de doses expirou no último dia 6 de maio.

Em resposta às suspeitas na contrataçã­o da vacina Covaxin, Bolsonaro mandou a PF investigar o servidor do Ministério da Saúde que apontou pressão atípica para liberação da importação e também o deputado Luis Miranda.

A Precisa afirmou que o preço de US$ 15 por dose da vacina Covaxin oferecido ao governo brasileiro segue tabela mundial e é o mesmo praticado com outros 13 países.

A empresa disse ainda, em nota, que “jamais promoveu qualquer tipo de pressão e não contou com vantagens durante esse processo”.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que respeita a autonomia da Anvisa e que não faz pressão para aprovação de vacinas. A pasta afirma ainda que ainda não efetivou a compra de nenhuma dose da vacina Covaxin.

Verificamo­s que na data de hoje a empresa encontra-se inadimplen­te no que se refere às duas primeiras parcelas

O prazo de validade é muito exíguo, uma vez que existem diversas etapas a serem concluídas até a vacinação propriamen­te dita

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