Saúde sabia dos riscos da Covaxin e manteve contrato
Fiscal da pasta listou problemas como inadimplência, efeitos adversos graves e falha no transporte
O Ministério da Saúde tinha ciência de riscos como inadimplência e prazo de validade muito pequeno quando decidiu manter o contrato com a Precisa Medicamentos, intermediária na venda da vacina indiana Covaxin.
Os lotes jamais foram entregues. O acordo virou o principal alvo da CPI da Covid após a Folha revelar denúncias de irregularidades ao Ministério Público pelo chefe de importação da pasta, Luis Ricardo Miranda.
Miranda e o irmão, deputado Luis Miranda, repetiram na comissão os relatos de que o presidente fora alertado para os problemas. Nada, porém, foi feito —ontem Jair Bolsonaro disse que a compra será investigada.
A fiscal do contrato no ministério listou, em março, seis riscos —entre eles, alto custo, efeitos adversos graves, falta de registro pelo órgão regulatório e falha de guarda ou transporte. Todos se concretizaram.
brasília O Ministério da Saúde manteve a parceria com a Precisa Medicamentos mesmo após a fiscal do contrato detectar inadimplência na entrega de 8 milhões de doses da vacina Covaxin e prazo de validade “muito exíguo” de lotes que chegaram a ser prometidos e nunca foram entregues.
A servidora designada para a função de fiscal detalhou em documento os pontos que configuravam o “descumprimento do contrato”, título da notificação direcionada tanto à Precisa, intermediadora do negócio, quanto à Bharat Biotech, laboratório indiano que produz a Covaxin.
As suspeitas envolvendo a compra da vacina atingiram o Palácio do Planalto e viraram uma nova linha de investigação na CPI da Covid no Senado. Nesta sexta (25), o presidente Jair Bolsonaro afirmou que a Polícia Federal vai abrir inquérito para investigar a compra da Covaxin. “É lógico que a PF vai abrir inquérito.”
A existência de denúncias de irregularidades foi revelada pela Folha no dia 18, com a divulgação do depoimento sigiloso de Luís Ricardo Miranda, chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde e irmão do deputado federal Luís Miranda (DEM-DF).
O servidor disse ao MPF (Ministério Público Federal) em Brasília que recebeu pressão atípica para agilizar a liberação da Covaxin. O parlamentar, por sua vez, disse ter levado a Jair Bolsonaro, no Palácio da Alvorada, uma denúncia sobre irregularidades no contrato da Covaxin.
A fiscal do contrato detalhou problemas na execução da parceria num documento de 30 de março, remetido aos representantes das empresas no dia seguinte.
Um dia depois, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) negou pedido da Saúde para importação de um primeiro lote de vacinas indianas. Faltavam documentos básicos, que atestassem a segurança, a qualidade e a eficácia do imunizante.
A Folha teve acesso ao processo administrativo que registra todos os passos da contratação da vacina indiana.
Entre os documentos que integram o processo está uma matriz de risco elaborada pelo ministério em 17 de fevereiro, com apontamento de seis riscos ligados à Precisa em caso de efetivação do contrato. Um deles era a possibilidade de atraso na entrega.
Os outros são a elevação dos custos, efeitos adversos graves, falta de registro pelo órgão regulatório, falha na guarda ou transporte do imunizante e problemas relacionados à temperatura do produto.
O contrato foi assinado em 25 de fevereiro, com a Precisa representando a Bharat Biotech. Ficaram previstos 20 milhões de doses, a um custo individual de US$ 15 (R$ 80,70). O valor total do contrato é de R$ 1,61 bilhão, dinheiro que já está empenhado (reservado, autorizado) pelo governo Bolsonaro desde 22 de fevereiro.
Dois dos seis riscos previstos na matriz se concretizaram. Todos os prazos contratuais foram desrespeitados. Além disso, a Anvisa já negou um pedido de importação, o que só foi concedido mais de dois meses depois, no último dia 4, com restrições de quantidade e uso da vacina.
A constatação mais assertiva da quebra de contrato foi feita pela fiscal designada para acompanhar o contrato. A notificação que ela elaborou é de 30 de março.
“Verificamos que na data de hoje a empresa encontrase inadimplente no que se refere às duas primeiras parcelas, qual sejam 4 milhões de doses que deveriam ser entregues em 17/03/2021 e 4 milhões de doses em 27/03/2021”, afirmou no documento.
Esse não foi o único problema detectado. Os lotes identificados para a primeira tentativa de importação tinham prazo de validade em abril e maio. “O prazo é muito exíguo, uma vez que existem diversas etapas a serem concluídas até a vacinação propriamente dita”, aponta a notificação.
A fiscal ainda apontou a negativa, pela Anvisa, da concessão do certificado de boas práticas de fabricação à fabricante do imunizante na Índia.
O ministério encaminhou a notificação tanto a Francisco Maximiano, dono da Precisa, quanto a Emanuela Medrades, diretora da empresa.
Numa resposta à fiscal do contrato em 7 de abril, a Precisa forneceu uma informação errada. “A oficiante apresen
Trechos de documentos produzidos por fiscal do Ministério da Saúde sobre o acordo para compra da Covaxin
tou os documentos necessários para realização da importação do imunizante Covaxin tempestivamente ao tempo do cronograma previsto para as entregas 1 e 2”, escreveu.
A tabela reproduzida mostra que o primeiro lote de 4 milhões de doses deveria ter sido fornecido até 17 de março.
Os documentos que constam do processo administrativo da contratação registram que a Precisa manifestou interesse em uma autorização excepcional de importação no dia 18, um dia depois de vencido o primeiro prazo.
Mesmo com a iminência de descumprimento do contrato, o então secretário-executivo da pasta, o coronel Elcio Franco Filho, pediu a Maximiano e a Medrades adicional de 50 milhões de doses, além dos 20 milhões contratados.
Em ofício de 6 de março, Franco, braço direito do general Eduardo Pazuello na pasta naquele momento, apontou a intenção de compra de 50 milhões de doses a mais.
Nove dias depois, em novo ofício, ele pediu a antecipação do “máximo número possível de doses ao Brasil”. O documento foi enviado a Maximiano e ao diretor-presidente da Bharat Biotech, Krishna Ella.
Franco queria 10 milhões ainda em março. Até agora, nenhuma dose entrou no Brasil. O prazo contratual para os 20 milhões de doses expirou no último dia 6 de maio.
Em resposta às suspeitas na contratação da vacina Covaxin, Bolsonaro mandou a PF investigar o servidor do Ministério da Saúde que apontou pressão atípica para liberação da importação e também o deputado Luis Miranda.
A Precisa afirmou que o preço de US$ 15 por dose da vacina Covaxin oferecido ao governo brasileiro segue tabela mundial e é o mesmo praticado com outros 13 países.
A empresa disse ainda, em nota, que “jamais promoveu qualquer tipo de pressão e não contou com vantagens durante esse processo”.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que respeita a autonomia da Anvisa e que não faz pressão para aprovação de vacinas. A pasta afirma ainda que ainda não efetivou a compra de nenhuma dose da vacina Covaxin.
Verificamos que na data de hoje a empresa encontra-se inadimplente no que se refere às duas primeiras parcelas
O prazo de validade é muito exíguo, uma vez que existem diversas etapas a serem concluídas até a vacinação propriamente dita