Folha de S.Paulo

Skatista Kelvin Hoefler fugiu do surfe e viu talento aflorar no street

Grande nome do street há anos, skatista do Guarujá (SP) buscará medalha na estreia olímpica do esporte, em Tóquio

- Daniel E. de Castro

SÃO PAULO Até o começo da adolescênc­ia, Kelvin Hoefler alternava no Guarujá (litoral de São Paulo) entre sessões de surfe pela manhã e skate à tarde. Ele não demorou, porém, para definir sua preferênci­a.

“Comecei no mar, mas odiava água gelada. Já não aguentava mais, e achava mais ‘daora’ andar de skate. No surfe também tinham uns caras meio chatos, e no skate todo mundo era amigo pra caramba”, ele conta à Folha.

Aos 28 anos, Kelvin é um dos principais representa­ntes da modalidade street no Brasil e está classifica­do para representa­r o país na Olimpíada de Tóquio-2020. Hoje não há dúvidas de que a escolha feita anos atrás foi certeira, mas até que isso ficasse visível, o skatista precisou ralar para construir sua trajetória.

Ela começou aos 9 anos, quando o pai, Eneas de Souza, policial, e a mãe, Roberta Hoefler, dona de casa, deram um skate de presente para o garoto e montaram uma pequena rampa na garagem, já que a cidade não tinha locais adequados para a prática.

“Ele dormia com aquele skate. No dia seguinte, era skate pela minha cozinha, pela sala, pelo quintal. Era muita alegria, nunca vi ele tão feliz quanto no dia que ganhou esse skate”, disse Roberta em entrevista à série “Aspire – Inspire”, produzida pela empresa Monster Energy, uma das patrocinad­oras de Kelvin.

Em 2010, o brasileiro desembarco­u nos Estados Unidos como atleta amador e foi hospedado por um amigo que morava em Atlanta. “Ele falou que o esquema era ir para a Califórnia, e eu nem sabia que porra era Califórnia, mas se ele falou, tudo bem. O cara tinha um carro e era mais novo que eu, que andava de bicicleta no Guarujá, não tinha recurso”, relembra.

Na busca por virar profission­al, Kelvin começou a correr uma série de eventos para fazer o pé de meia e se arriscou em campeonato­s na Europa.

Foi um sucesso, não apenas do ponto de vista esportivo. Numa das viagens, ele conheceu a fotógrafa especializ­ada no esporte Ana Paula Negrão, que morava na tal Califórnia. Não teve dúvidas: pediu abrigo a ela durante uma competição e assim alugou um espaço numa generosa cozinha que dividiu com outros três hóspedes.

As coisas caminhavam bem em 2011, mas durante nova incursão europeia Kelvin sofreu uma séria lesão no joelho e precisou retornar ao Brasil. Ana foi visitá-lo durante a recuperaçã­o, e eles iniciaram um relacionam­ento —hoje são casados.

Em 2012 e 2013, ele competiu no circuito brasileiro e também viajava para eventos no exterior. A competição que mudou tudo ocorreu em 2014, na África do Sul, para onde ele não estava muito disposto a ir. Convencido por Ana, decidiu arriscar e venceu, faturando na época um inimagináv­el prêmio de US$ 100 mil.

“Liguei para aquele amigo na mesma hora dizendo que eu estava me mudando para a Califórnia”, relata o skatista, que passou a morar perto de San Diego. No ano seguinte, ele entrou para a Street League, principal circuito mundial dos kate de rua, evirou um de seus nomes mais proeminent­es. Também ganhou edições dos tradiciona­is X Games.

Coma entrada da Olimpíada no mapa do skate competitiv­o, o experiente Kelvin se prepara para um desafio inédito na carreira. Quarto do ranking da World Skate, que definiu as vagas nos Jogos, está atrás de dois japoneses (Yuto Horigome e Sora Shirai) e do astro americano Nyjah Huston.

O Brasil terá mais dois representa­ntes no street masculino: Felipe Gustavo, 30, contemporâ­neo de Kelvin nos torneios, e Giovanni Vianna, revelação da modalidade aos 20 anos.

Se no começo a realidade de Kelvin era a rampa improvisad­a na garagem dos pais, agora ele tem uma pista mais completa no quintal da sua casa, o que permitiu que continuass­e a praticar mesmo quando a pandemia da Covid-19 paralisou o esporte mundial.

Durante o isolamento, o atleta recorreu ainda mais aos games, outro universo que habita, com transmissõ­es de live streaming, para estar próximo dos amigos.

Longe de estar insatisfei­to com a vida que o esporte lhe proporcion­ou, o brasileiro aponta que seus principais adversário­s treinam em locais fechados, enquanto ele precisa lidar com as oscilações climáticas em sua pista a céu aberto.

Mas quem sabe essa preparação possa significar uma vantagem em Tóquio, já que é esperado calor intenso para o período dos Jogos. O street masculino será a primeira categoria em disputa, na manhã do dia 25 de julho, horário local.

Kelvin se preocupa, por exemplo, com o derretimen­to da vela que os atletas passam nos corrimões para ajudar a deslizar. Sem esse recurso, aumenta a possibilid­ade de o skate travar durante a manobra e o skatista se machucar.

Kelvin é tido como um atleta frio, sereno, capaz de executar manobras de alto nível técnico sob pressão. Ele também se vê assim e avisa que, mesmo não sendo o grande favorito da sua categoria, é melhor que não descartem suas chances.

“Sou aquele cara bem pacato, não chego com os dois pés no peito, por respeito aos adversário­s também. Venho praticando degrau por degrau. Nos últimos eventos fui tranquilin­ho, querendo conquistar a vaga. E agora chegou o momento de querer estar no topo. Sempre fui assim. Chego de mansinho e, na hora que eles vacilam, eu vou lá e ganho.”

“Comecei no mar, mas odiava água gelada. Já não aguentava mais, e achava mais ‘daora’ andar de skate. No surfe também tinham uns caras meio chatos, e no skate todo mundo era amigo pra caramba

Kelvin Hoefler skatista brasileiro

 ?? Tiziana Fabi - 6.jun.21/AFP ?? O skatista Kelvin Hoefler, 28, em manobra na final do Campeonato Mundial de Skate Street, em Roma
Tiziana Fabi - 6.jun.21/AFP O skatista Kelvin Hoefler, 28, em manobra na final do Campeonato Mundial de Skate Street, em Roma

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