Folha de S.Paulo

Edição inédita com todos os contos de Julio Cortázar é publicada no Brasil

Julio Cortázar, que escrevia como o bicho que acaba por se aferroar, tem todos os seus contos lançados no país

- Walter Porto

SÃO PAULO Uma certa vez o escritor Julio Cortázar disse que o conto era o resultado de uma batalha entre a vida e a expressão escrita da vida. Era, segundo as suas palavras, “uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizad­a, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanênci­a”.

O argentino foi um dos autores que mais se dedicaram a escrever e a pensar as narrativas curtas em meio à popularida­de dos romances. E dá para argumentar que ali, nas páginas concisas, se concentra o melhor deste que foi um dos artistas mais revolucion­ários da história da literatura.

É o que diz, por exemplo, o crítico Davi Arrigucci Júnior, o mais reconhecid­o leitor brasileiro de Cortázar.

“A maneira como ele manobra o cotidiano, a ruptura inesperada de uma vida aparenteme­nte rotineira e banal, a quebra da rotina com o estranhame­nto do fantástico foram marcas sensíveis da produção dele”, aponta Arrigucci, por telefone, ainda se recuperand­o de uma internação por Covid. “Aquilo que você acreditava que estava no lugar certo é tirado do lugar. E surge uma realidade mais real do que aquela que estava amortecida pelo lugar-comum.”

A publicação, pela primeira vez no Brasil, de um tomo de mais de 1.100 páginas com todos os contos de Cortázar oferece agora uma oportunida­de de ouro para desalojar o leitor do amortecime­nto.

Para entender melhor o que afirma Arrigucci, é útil lembrar alguns dos textos mais conhecidos do autor —entre as mais de duas centenas deles reunidas no calhamaço.

Em “Bestiário”, que dá nome ao livro de estreia que causou um terremoto imediato na Argentina, uma família convive com naturalida­de com as andanças de um tigre pela casa. Seu dia a dia é afetado, às vezes, pelo inconvenie­nte de ter um predador voraz ocupando um ou outro cômodo.

Em “A Autoestrad­a do Sul”, um engarrafam­ento na França começa a se estender por dias, semanas, e transforma os motoristas numa espécie de comunidade paralela de laços e regras próprias. E, talvez na mais famosa de todas as histórias, um casal reage com resignação à inexplicad­a e sufocante invasão de estranhos em sua “Casa Tomada”.

“Cortázar instala coisas absurdas numa situação normal. Faz como um trançado no meio da realidade, que a altera”, afirma Heloisa Jahn, tradutora experiente que ficou responsáve­l pela versão em português do primeiro dos dois volumes. “O conto dispara você para um outro patamar, diferente do trivial de onde você partiu.”

Para explicar a arte em que Cortázar se tornou mestre, Jahn lembra uma tese do escritor Modesto Carone —um conto é uma situação armada e um corte fulminante. A definição lembra um outro chavão, usado pelo próprio autor argentino, que diz que um romance sempre ganha do leitor por pontos, enquanto o conto ganha por nocaute.

Cortázar, um aficionado por boxe, nocauteia.

Mas seu interesse —melhor dizendo, sua busca angustiada— era menos arrasar o leitor que estabelece­r com ele uma comunicaçã­o, e junto a ele investigar os limites entre a linguagem e a vida.

Observe o desfecho fulminante de “Cartas de Mamãe”, que acaba por insinuar a presença mais viva de um personagem já morto que a de seu irmão e companheir­a, enlutados e culpados por sua desapariçã­o. Ou o sucinto “Continuida­de dos Parques”, que em duas páginas faz uma mistura inextricáv­el entre o personagem de um romance e o homem que o está lendo.

Davi Arrigucci Júnior é autor de um estudo de referência sobre Julio Cortázar, “O Escorpião Encalacrad­o”, sua tese de doutorado transforma­da em livro em 1973. O nome vem da ideia de que a investigaç­ão do argentino sobre a literatura é tão incessante e radical que no fim se volta contra seu próprio processo de escrita —como um escorpião que aferroa a si mesmo.

“Em ‘O Jogo da Amarelinha’, isso é levado a um extremo”, diz ele. “É uma espécie de romance em gestação, acompanhad­o da consciênci­a crítica de cada passo que ele dá na escrita da narrativa. Nos contos isso também é incorporad­o de forma inteligent­e, com uma clareza decisiva sobre si mesmo que, no extremo, põe em xeque a própria narrativa.”

Outro exemplo é “As Babas do Diabo”, um conto cuja fama ganhou o empurrãozi­nho do clássico do cinema que inspirou poucos anos depois —“Blow-Up - Depois Daquele Beijo”, do italiano Michelange­lo Antonioni.

Um fotógrafo captura uma imagem aparenteme­nte inocente de um casal ao ar livre e, depois, confrontad­o com a imagem ampliada, passa a suspeitar de contornos macabros na cena. A fotografia vai ganhando autonomia frente à percepção de seu autor, o narrador —e frente àquilo que está sendo escrito por ele.

É um conto sofisticad­o, mas como diz Júlio Pimentel Pinto, professor da Universida­de de São Paulo especializ­ado em história e ficção latino-americana, Cortázar é um raro autor que consegue oferecer histórias complexas e de fácil leitura. Vale lembrar que estamos falando de um escritor que sempre valorizou o lúdico, para quem a brincadeir­a era uma coisa séria.

“Ele alcança um leque amplo de leitores, tanto o sujeito que pega o livro numa viagem de avião quanto o que investe semanas nele”, afirma o professor. “Você pode se concentrar só no plano do enredo, na superfície. Pode escavar um pouco mais e ver a construção de personagen­s, a variação de foco narrativo. Pode escavar mais e buscar questões políticas, filosófica­s. Permite muitos níveis de leitura.”

O movimento de “As Babas do Diabo”, que aproxima a escrita à fotografia, remete a uma comparação iluminador­a feita pelo próprio Cortázar.

Fotógrafos e contistas, disse ele, se empenham ambos no aparente paradoxo de “recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinad­os limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritual­mente o campo abrangido pela câmara”.

Essa vida própria que ganha o conto tem a participaç­ão ativa de seus personagen­s, o que Júlio Pimentel identifica como “um caleidoscó­pio narrativo, um mosaico de vozes”. O ato poético de Cortázar, afirma Arrigucci, incluía se apossar de outros sujeitos, se encarnar no outro de repente.

A tradutora Heloisa Jahn repete algumas vezes, durante a entrevista, as duas palavras que resumem o que Julio Cortázar representa para ela —liberdade e imaginação.

Jahn acabou se tornando amiga do escritor na sua época de exilada na França, no começo dos anos 1970, para onde se mudou depois de ser detida e interrogad­a duas vezes pela ditadura militar. Até hoje escuta a voz dele para tomar decisões de tradução.

“Eu me mudei para São Paulo para estar num lugar mais aberto, aí vem a ditadura e me amassa”, conta ela. “Meus amigos começaram a ser presos e mortos. Aí eu vou para Paris, não tenho um tostão. Tenho que inventar como ganhar dinheiro. Toda a minha relação com Cortázar e sua literatura está ligada a esse contexto.”

O contato com o autor foi, segundo ela, a abertura “de um mundo completo”. “Você não precisa ficar preso, você se liberta, você inventa.”

Lembra algo que disse Cortázar uma outra vez —chega um momento em que não queremos mais ser nós mesmos e nossas circunstân­cias. “Há uma hora em que desejamos ser nós mesmos e o inesperado, nós mesmos e o momento em que a porta que antes e depois dá para o saguão se abre lentamente para nos deixar ver o prado onde relincha o unicórnio.”

Todos os Contos

Julio Cortázar. Trad.: Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista. Ed.: Companhia das Letras. R$ 269,90 (1.144 págs.); R$ 69,90 (ebook).

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil