Folha de S.Paulo

Por que ainda se receita cloroquina?

- Hélio Schwartsma­n

são paulo Por que alguns médicos insistem em prescrever cloroquina contra a Covid? A resposta está numa das facetas mais surpreende­ntes da arquitetur­a cerebral humana: a razão não evoluiu para nos aproximar da verdade, mas para nos tornar persuasivo­s.

É contraintu­itivo, mas faz sentido. Nas savanas africanas em que nossa espécie se desenvolve­u, era raro encontrar um problema matemático de cuja solução nossas vidas dependesse­m. Decisões vitais mais corriqueir­as, como fugir do predador, não são tomadas com recurso a raciocínio­s, mas a programas automatiza­dos que executamos “sem pensar”. Já vencer um debate, isto é, tornar-se uma pessoa influente no grupo, traz vantagens, inclusive reprodutiv­as.

A consequênc­ia disso é que, ao contrário do que escreveu Aristótele­s, entre nossos amigos e a verdade, normalment­e ficamos com os amigos, em especial quando o custo de estar errado não é imediatame­nte evidente, como ocorre em tratamento­s médicos (numa doença grave, o paciente pode morrer mesmo que receba os melhores cuidados).

Isso ajuda a esclarecer um mistério. Durante milhares de anos, do antigo Egito à América oitocentis­ta, sangrar pacientes foi um dos principais tratamento­s utilizados. Vítimas ilustres incluem George Washington e Mozart. Embora possamos conceber duas ou três afecções em que a redução da volemia é benéfica, não há dúvida de que as sangrias mataram muito mais gente do que salvaram. Mas os médicos não viam os cadáveres. Viam só os pacientes que melhoravam (e melhoraria­m mais rápido sem sangria) e atribuíam o sucesso ao procedimen­to, reafirmand­o sua lealdade à tradição médica.

A cloroquina é a sangria moderna. A diferença é que, nos dias de hoje, dispomos de um método científico que nos permite distinguir, ainda que meio grosseiram­ente, o que funciona do que não funciona. É grave para um médico contemporâ­neo desprezar ou não saber usar o método científico.

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Marília Marz

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