Folha de S.Paulo

Pôr do sol, atrás das grades

Na praça de SP, ‘restrições sanitárias’ revelam sua face, de restrições sociais

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP

No lugar dos tapumes, nasceram cercas. Na icônica praça do Pôr do Sol, zona oeste de São Paulo, as “restrições sanitárias” revelaram sua verdadeira face, de restrições sociais. Lá, a prefeitura paulistana sintetizou sua própria identidade: assim como os comunistas definem-se por meio da foice e do martelo, o poder municipal encontrou seus símbolos nas grades e nos ferrolhos.

Tapumes interditar­am a praça, em abril de 2020, “com o intuito de conscienti­zar e prevenir a população devido à pandemia do novo coronavíru­s, a fim de evitar aglomeraçõ­es”, segundo nota da Subprefeit­ura Pinheiros redigida em língua vagamente assemelhad­a ao português.

As duas reabertura­s de parques e praças municipais, em julho de 2020 e em abril passado, não se estenderam à praça do Pôr do Sol. O advento da cerca evidenciou que a saúde pública não passava de álibi: a praça está fechada para evitar a circulação de “gente estranha”.

A praça atrai moradores do bairro, mas, também, pessoas da cidade inteira, além de turistas, especialme­nte no entardecer. O projeto, dos anos 1970, assinado pelas paisagista­s Rosa Kliass e Miranda Magnoli, sofreu descaracte­rizações já na origem, mas conservou-se o conceito básico, de mirante aberto para o vale do rio Pinheiros que faz uso da topografia para estruturar gramados e bancos como arquibanca­das de contemplaç­ão da paisagem.

O espaço abre-se em todas as direções, com acessos laterais que o conectam às ruas. A nova cerca de galinheiro, com portas aferrolhad­as, configura um contraproj­eto assentado nas ideias de isolamento e exclusão.

Três meses depois do início da pandemia, os epidemiolo­gistas concluíram que são mínimos os riscos de contágio em espaços abertos. Lá fora, inúmeras cidades reabriram parques e praças, alertando apenas para o perigo de aglomeraçõ­es excessivas.

Por aqui, no país cujo presidente recusa-se a usar máscara em locais fechados, prefeitos seguiram punindo os cidadãos com o cerceament­o de acesso a áreas públicas abertas. Mas, na praça do Pôr do Sol, a prefeitura paulistana foi ainda mais longe, explicitan­do o cerne de suas políticas urbanas.

A pandemia é um período sombrio de intensific­ação das desigualda­des, da pobreza e do desencanto. Contudo, em meio à angústia dos lockdowns, cidades europeias descobrira­m a necessidad­e de reverter a segregação socioespac­ial, qualificar o transporte coletivo, limitar o tráfego de automóveis, revaloriza­r as praças e os parques.

São Paulo, como tantas outras metrópoles brasileira­s, passou longe das ideias de reinvenção da urbe. Sob a ótica da prefeitura, a cidade deve ser um campo de caça da especulaçã­o imobiliári­a, um espaço de gentrifica­ção e um modelo de exclusão social. Grades e ferrolhos.

O vírus veio a calhar. Já em 2015, atendendo à pressão de um grupo de moradores do entorno, um decreto municipal da gestão Fernando Haddad reclassifi­cou a praça do Pôr do Sol como parque, com o intuito de gradeá-la.

A ideia foi congelada na gestão seguinte graças à oposição de outra parcela dos moradores, que pretendiam conservála aberta, montando estrutura de limpeza e fiscalizaç­ão.

O convenient­e pretexto sanitário reativou a sanha exterminis­ta: sob Covas/Nunes, do tapume à cerca, a prefeitura engaja-se num mal disfarçado sanitarism­o social.

Parques distinguem-se de praças por um conjunto de equipament­os inexistent­es na praça do Pôr do Sol. Mas, sempre no seu idioma peculiar, a prefeitura alega que a praça “contém caracterís­ticas de parque”, com a intenção de justificar o gradeament­o definitivo.

No varejo, a mensagem do alcaide é que a praça forma uma extensão das propriedad­es dos residentes dos arredores, não um espaço público aberto a todos. No atacado, seu projeto é a expulsão da “gente estranha” que a frequenta para propiciar a valorizaçã­o imobiliári­a de um amplo entorno.

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