Clarice Herzog faz 80 anos e é homenageada por luta de 4 décadas
Cantada em ‘O Bêbado e a Equilibrista’, viúva de jornalista morto pela ditadura militar é tema de documentáio
são paulo “A música é sua, é para você, foi feita para você”, Clarice Herzog ouviu de um amigo assim que saiu “O Bêbado e a Equilibrista”, que narra quando, na “nossa pátria mãe gentil”, choraram “Marias e Clarices no solo do Brasil”.
Era para ela mesmo. A composição de João Bosco e Aldir Blanc virou marco da luta por direitos humanos no país. E não dá para contar essa história sem falar de um pranto que levou Clarice a peitar a ditadura após seu marido ser assassinado pelos militares.
“Sr. Wladimir [sic] Herzog. Aos 38 anos de idade. Deixa viúva a sra. Clarice Herzog e dois filhos: Ivo, de 9 anos, e André, de 7 anos. Seu corpo está sendo velado no hospital Albert Einstein, no Morumbi, de onde o féretro sairá hoje, às 10 horas, para o Cemitério Israelita do Butantã.”
Foi assim, uma nota seca na seção de obituários, em 27 de outubro de 1975, que o nome de Clarice apareceu pela primeira vez na Folha. As menções seguintes vinham associadas a uma mulher que se recusava a aceitar a versão oficial para a morte do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado.
O regime divulgou uma cena forjada para sustentar que ele, membro do Partido Comunista Brasileiro que foi depor no Doi-Codi, havia se enforcado com um cinto. A esposa nunca comprou essa versão.
Vlado, que faria 84 anos neste domingo (27), e Clarice, que vira octogenária em 1º de julho, norteiam a campanha Duas Vidas, Uma Só Luta, lançada para celebrar os 12 anos do instituto que leva o nome dele.
Clarice chorou, e não foi pouco. “Lembro que o Vlado estava indo lá no negócio [caixão], o menor, o André, falou: ‘Mãe, você tem certeza que meu pai tá aí?’. Aí eu falei: ‘Tenho. Infelizmente está’”, ela lembrou ao Museu da Pessoa.
Continuou: “E eu estava chorando, chorando. E ele [dom Paulo Evaristo Arns]: ‘Acalma, acalma’. Aí tinha o Dom Hélder [Câmara] dizendo: ‘Paulo, deixa, ela tem que pôr essa raiva para fora’”.
Aquele ato, segundo Clarice, “foi uma beleza”. A cerimônia ecumênica que homenageou Vlado é até hoje um dos símbolos da resistência à ditadura. Liderada por um católico (dom Paulo), um evangélico (reverendo Jaime Nelson Wright) e um judeu (rabino Henry Sobel), juntou milhares de pessoas na praça da Sé.
Sobel, à época, recusou-se a enterrar Herzog, judeu, junto aos muros do cemitério —ala reservada a suicidas. Recado dado: o rabino não acreditava na balela militar.
Vlado e Clarice se conheceram na USP. Ela, estudante de sociologia, vendia livros. Ele, veterano do curso de filosofia, puxou papo. Casaram-se em 1964, semanas antes do golpe, e passaram quatro anos em Londres, voltando ao Brasil antes do AI-5, o ato institucional mais duro do período.
“A imagem dela é a de uma pessoa com um livro na mão”, conta o filho Ivo. “Ela tem um sítio lá em Bragança Paulista [SP], sentava lá no solzinho pra ficar devorando livros.”
Foi nesta casa no campo que Clarice pensou em se refugiar quando o casal soube que o nome de Herzog havia sido citado para os fardados em interrogatórios. Não deu tempo.
Em 1985, a Folha entrevistou Ivo e André. O texto narra que eles ficaram “muito chateados” quando, na noite do assassinato, foram com a mãe à TV Cultura para buscar o pai, mas ele não estava lá.
“Ivo prestou atenção ‘nuns homens estranhos’ e pressentiu algo ruim. André, em minutos se esqueceu da frustração.” A família ia pescar no sítio.
Uma década depois, os dois recordaram dos “sonhos com um mundo melhor e do gosto pela política” do pai. Desde 1977, Clarice está com Gunnar Carioba, publicitário como ela.
“Quando meu pai morreu ela pôs na cabeça que a perda não poderia impactar nas oportunidades que teríamos. Queria trabalhar, ganhar dinheiro, se transformou numa workaholic”, diz Ivo.
Ele conta que a mãe “já tinha consciência política importante” antes de 1964, porque um tio materno foi assassinado pelo Estado Novo.
“Ela já era plugada.” E assim continuou. Um documentário sobre Clarice, que será exibido nas redes sociais do Instituto Vladimir Herzog na noite do seu aniversário de 80 anos, terá depoimento de personalidades como os ex-presidentes Lula (PT) e FHC (PSDB).
O tucano foi seu professor de sociologia na USP e chegou a visitar a família Herzog em Londres. Clarice tem simpatia pela sigla e, em 2018, declarou voto em Geraldo Alckmin.
Segundo Ivo, já ajudou candidatos do PT também. Em 2018, contudo, disse à Folha o seguinte sobre sua posição política. “Como se classifica politicamente?” “Sou de esquerda.” “Vota no PT?” “Não, sou contra o PT. Depois de tantos escândalos, não dá mais.”
No segundo turno, contudo, ela preferiu Fernando Haddad a anular o voto ou escolher Jair Bolsonaro. Na mesma entrevista, Clarice reagiu a uma fala do então candidato, hoje presidente, sobre o marido.
Questionado sobre o caso Herzog, ele afirmou que “não estava lá” para confirmar que ele foi morto pelo regime e que “suicídio acontece”. “Espero que perca seus eleitores durante a campanha. É um horror esse homem”, desejou.
Clarice nunca desistiu de pedir justiça por Vlado, mas “está se poupando de relembrar” as memórias doloridas, diz Ivo. Daí não recontar sua história. “Já encheu o copinho.”
Ao Museu da Pessoa, recordou: “Ele cantava, sabe?, cantava óperas em tons diferentes, então a gente viajava, eu dirigia e ele ia cantando no caminho”. Foi calado em 1975.