Folha de S.Paulo

Bresser-Pereira revê percurso intelectua­l e frustração com governos

Ex-ministro de Sarney e FHC reflete sobre formação, erros e contradiçõ­es em livro de entrevista­s organizada por discípulos

- Ricardo Balthazar

são paulo Em 1984, a ditadura militar agonizava, e o economista Affonso Celso Pastore estava perto de encerrar sua gestão como presidente do BC quando recebeu uma visita de Luiz Carlos Bresser-Pereira, que então presidia o Banespa, o poderoso banco controlado pelo governo paulista.

Os dois se conheceram na USP e sempre tiveram visões diferentes sobre muitos assuntos, mas nada os angustiava mais nessa época do que o ritmo acelerado em que os preços subiam. “Eu fiz tudo para baixar a inflação, mas ela não baixou”, lamentou Pastore ao se despedir do colega.

Bresser achava que tinha a solução para o problema, mas diz que se calou para não ser indelicado. “Fiquei ali com vontade de dizer: ‘Se você tivesse lido meus dois papers, você teria entendido por quê’”, conta o economista, que um ano antes deixara com Pastore seus trabalhos teóricos sobre a inflação.

O episódio é relatado num livro que será lançado na próxima semana, em que Bresser reexamina sua formação intelectua­l, fala das frustraçõe­s acumuladas em suas passagens pelo governo e discorre com ironia sobre as incontávei­s ocasiões em que suas ideias foram ignoradas pelos que discordava­m delas.

A obra é resultado de cinco longas entrevista­s realizadas entre 2017 e 2019 pelo jornalista João Villaverde, que foi seu aluno, e pelo economista José Marcio Rego, professor da FGV, onde Bresser começou a dar aulas em 1959.

“Bresser-Pereira: Rupturas do Pensamento” apresenta o economista como um pensador inquieto e eclético, que em décadas de trabalho fundiu elementos de diferentes correntes de pensamento na tentativa de oferecer uma contribuiç­ão original para o entendimen­to dos problemas brasileiro­s.

Embora os dois discípulos não façam segredo da admiração que sentem pelo entrevista­do, o livro revela também um intelectua­l disposto a refletir sobre suas contradiçõ­es e os erros do passado —e deixa claro que Bresser prefere enfrentar as polêmicas a lidar com o descaso dos pares.

Formado em direito pela USP, ele desistiu de ser juiz para estudar economia ao conhecer as ideias nacionalis­tas do Instituto Superior de Estudos Brasileiro­s (Iseb), polo influente do pensamento progressis­ta nos anos 1950 e origem de muitas teses que o economista defende até hoje com ardor.

Bresser fez mestrado na Universida­de do Estado de Michigan, nos EUA, e doutorado na USP, mas por muito tempo se dividiu entre a carreira acadêmica e o setor privado. Começou a trabalhar no Pão de Açúcar em 1963, quando a rede estava nascendo, e foi seu diretor até os anos 1990. Na década de 1980, participou dos debates sobre a inflação com uma série de artigos em parceria com Yoshiaki Nakano, também da FGV. Neles, a dupla analisava os mecanismos de indexação que alimentava­m os reajustes de preços e sugeria medidas para combater esse efeito inercial.

Bresser teve chance de pôr em prática suas ideias sobre a inflação no breve período em que foi ministro da Fazenda de José Sarney. Ele assumiu em 1987, após o fracasso do Cruzado, promoveu novo congelamen­to de preços e se demitiu sete meses depois, quando a inflação subia 14% ao mês.

No livro, Bresser atribui o fracasso ao desalinham­ento dos preços de vários setores da economia na época do congelamen­to, o que estimulava novas pressões por reajustes, e à falta de apoio do presidente para seu pacote de ajuste fiscal.

A inflação só seria derrotada na década seguinte, com o Plano Real, graças a um mecanismo engenhoso criado pelos economista­s André Lara Resende e Persio Arida, ligados à PUC-Rio, para desmontar a engrenagem que alimentava reajustes de preços e salários.

Tesoureiro da campanha presidenci­al de Fernando Henrique Cardoso, Bresser voltou ao governo como ministro da Administra­ção e Reforma do Estado. No início do segundo mandato, foi demitido quando o presidente buscava espaço na administra­ção para reacomodar as forças políticas que o apoiavam. Decepciona­do com o presidente, que dava de ombros para suas críticas frequentes à política econômica do governo, Bresser passou a dedicar mais tempo às atividades acadêmicas e iniciou um ambicioso projeto de pesquisa, em busca de um novo modelo para o desenvolvi­mento.

Batizado como Novo Desenvolvi­mentismo, ele é o assunto principal de vários capítulos do livro de entrevista­s. Bresser reivindica para o modelo o status de uma nova teoria econômica, capaz de explicar o funcioname­nto do capitalism­o e oferecer alternativ­as para governos de países periférico­s como o Brasil.

Sua receita sugere manter o equilíbrio fiscal e adotar políticas que ajudem indústrias nacionais menos competitiv­as a crescer e enfrentar seus rivais estrangeir­os, garantindo um câmbio que estimule investimen­tos domésticos e exportaçõe­s, inibindo importaçõe­s.

A leitura mostra que Bresser é acima de tudo um otimista, com uma crença quase inabalável nas boas intenções dos empresário­s nacionais e na capacidade do Estado de coordenar o processo econômico sem ser capturado pelos interesses dos grupos beneficiad­os por suas políticas.

“Não vejo como é possível um sistema capitalist­a funcionar sem que o Estado regule o mercado e planeje os setores não competitiv­os do sistema econômico —setores que o mercado não tem como coordenar”, ele diz. “O Estado desenvolvi­mentista precisa administra­r preços macroeconô­micos, mantê-los certos.”

Bresser angariou simpatia na esquerda nos últimos anos, mas frustrou-se com os governos petistas. “Tentaram ser desenvolvi­mentistas, mas não tiveram forças para mudar o regime de política econômica que é liberal desde 1990”, diz. “Revelaram total desconheci­mento de minhas ideias.”

Na campanha presidenci­al de 2018, Bresser se aproximou do ex-ministro Ciro Gomes, que adotou como principal assessor econômico outro de seus discípulos, o professor Nelson Marconi. Bresser promoveu um encontro em que Ciro e o petista Fernando Haddad debateram suas propostas desenvolvi­mentistas.

A eleição de Jair Bolsonaro, que classifica como uma tragédia, parece ter abatido seu ânimo. “Estamos diante de um grande fracasso nacional.”

Embora mantenha a fé nas suas ideias, ele se diz pessimista sobre a capacidade de executá-las: “Hoje está claro para mim que nem a direita nem a esquerda são capazes de fazer o Brasil retornar ao desenvolvi­mento”.

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João Villaverde e José Marcio Rego. Editora 34 (400 págs.). R$ 76
BresserPer­eira: Rupturas do Pensamento João Villaverde e José Marcio Rego. Editora 34 (400 págs.). R$ 76

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