Folha de S.Paulo

15% das vacinas são aplicadas fora de município de residência, diz Fiocruz

Levantamen­to revela que mais da metade das cidades aplicou menos doses do que a média nacional

- Ana Bottallo

SÃO PAULO Um levantamen­to feito pelo Instituto de Comunicaçã­o e Informação Científica e Tecnológic­a em Saúde da Fiocruz (Icict/Fiocruz) aponta que 1 em cada 6 aplicações de doses das vacinas contra Covid-19 no país foi feita em um município diferente daquele de residência do vacinado.

Com isso, 11,3 milhões de doses, ou 15% do total, foram recebidas por pessoas que se deslocaram em média 252 km para receber a vacina —em alguns casos, esses deslocamen­tos chegaram a até 3.000 km.

Os dados da nota técnica foram extraídos do painel Open Data Sus, do Ministério da Saúde, que inclui as informaçõe­s do Plano Nacional de Imunização.

O estudo considerou a aplicação da primeira e da segunda doses da vacina desde o início da campanha, no dia 17 de janeiro, até o dia 16 de junho, contabiliz­ando um total 73.828.821 registros.

A análise aponta que, dos 5.570 municípios brasileiro­s, 2.886 (51%) aplicaram menos doses para cada cem habitantes do que a média nacional, de 23. No plano nacional, a vacinação fora do município de residência está na faixa de 11% a 25%.

“Existem dois fluxos que observamos nessa análise, o primeiro de pessoas que são residentes em um município e trabalham em outro e não conseguem se vacinar no seu local de moradia porque o posto de vacinação já está fechado quando retornam do trabalho. O outro fluxo é de pessoas que buscam municípios do entorno por já estarem adiantados no calendário de vacinação”, explica Diego Xavier, pesquisado­r do Icict e responsáve­l pela nota.

Apesar de a vacinação ter começado em todo o país em janeiro, o avanço nas faixas etárias após a imunização dos grupos prioritári­os fez com que houvesse um salto a partir de maio na aplicação de vacinas fora do local de residência.

Com a chegada de mais doses de imunizante­s no último mês, diversos governador­es estaduais e prefeitos decidiram antecipar a vacinação de faixas etárias mais jovens mesmo sem ainda completar a imunização dos grupos já contemplad­os.

Isso, somado ao que chama de “populações pendulares”, que são essas pessoas que trabalham em uma cidade maior ou nas capitais, mas moram na região metropolit­ana, influencio­u o chamado “apagão” de vacinas em algumas capitais e regiões, segundo o pesquisado­r.

“Quem trabalha com políticas públicas em saúde sabe que não existem fronteiras municipais para o SUS. Você não consegue impedir uma pessoa de ser atendida em uma unidade hospitalar de um município vizinho, e é assim que funciona o sistema único. Na questão das vacinas, isso deveria ter sido considerad­o e conversado justamente para evitar esses problemas”, diz Xavier.

Os pesquisado­res listaram os 25 municípios com o maior número de doses aplicadas fora da cidade de residência. Em primeiro lugar, vem Guarulhos, com 101.681 doses de residentes aplicadas na cidade de São Paulo. Em seguida, Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, com 47.507 doses aplicadas no Rio; Contagem (MG), com 39.443 doses aplicadas na capital mineira; Osasco (SP), com 37.715 doses injetadas na cidade de São Paulo, e Olinda (PE), com 35.695 doses em Recife (PE).

No caso de São Paulo capital, Santo André (35.236), Diadema (27.758), Taboão da Serra (27.650) e São Bernardo do Campo (27.119) também entraram na lista. Viajantes de outras capitais também vieram para o município de São Paulo buscar imunizante­s, contabiliz­ando cerca de 30 mil doses para o plano municipal.

Na última terça (22), a cidade de São Paulo teve que paralisar a vacinação contra Covid por falta de doses. Mas mesmo com os agravantes que a vacinação de indivíduos de fora traz para o município, Xavier não defende a imposição de barreiras, como a exigência do comprovant­e de residência —adotada em São Paulo desde o dia 29 de maio.

“Os postos de vacinação viram cartórios, onde é preciso comprovar sua moradia. Mas essa é uma medida criada para solucionar um problema que gera outro problema”, avalia. Uma solução seria, além de ampliar o horário de funcioname­nto dos postos, colocar mais funcionári­os vacinando e uma coordenaçã­o a nível estadual e nacional que considere esses fluxos.

Da mesma maneira, o anúncio dos calendário­s de vacinação, que recentemen­te se tornou uma disputa considerad­a “saudável” —como disse o ministro da Saúde Marcelo Queiroga ao antecipar o calendário nacional depois do anúncio feito pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB) de vacinar toda a população adulta paulista até 15 de setembro—, pode criar expectativ­as irreais na população e, depois, frustraçõe­s, diz o pesquisado­r.

“As pessoas que possuem meios, como tempo e um veículo, uma forma de se deslocar, vão fazer, e aqueles trabalhado­res da periferia que não conseguem se vacinar nem no município de residência, porque estão fora no horário comercial, nem na cidade em que trabalham por exigências de comprovant­e, vão ficar para trás. Isso só aumenta a desigualda­de vacinal no país”, afirma.

Há também a busca por imunizante­s específico­s, como é o caso da vacina da Pfizer/BioNTech, cuja procura gera filas em alguns postos enquanto outros permanecem vazios. Essa é mais uma falha na coordenaçã­o do plano nacional e na estratégia de comunicaçã­o, de assegurar que todas as vacinas são eficazes e protegem contra casos graves e óbitos.

“Essa tendência [da procura] pode apresentar um agravament­o nos próximos meses à medida que ocorre uma antecipaçã­o de faixas etárias e criam-se divergênci­as nos calendário­s de vacinação, antecipand­o grupos populacion­ais e eventualme­nte trazendo risco para aplicação de segundas doses”, diz a nota técnica.

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