Folha de S.Paulo

Documentos indicam falhas na localizaçã­o de corpos no Jacarezinh­o

Problemas se referem aos lugares em que ocorreram pelo menos 3 dos 27 homicídios do massacre

- Italo Nogueira

RIO DE JANEIRO Quatro policiais que participar­am da operação do Jacarezinh­o em maio, a mais letal da história do Rio de Janeiro, afirmam ter ocorrido falha na identifica­ção do local de morte de ao menos 2 das 27 vítimas civis.

Os depoimento­s dos agentes, obtidos pela Folha, mostram que eles declararam à Divisão de Homicídios, quase um mês após a operação, que os registros de ocorrência trocaram o local da morte de Raí Barreiros de Araújo, 18, e Luiz Augusto Oliveira de Faria, 41.

A Folha também identifico­u divergênci­as nos documentos sobre a morte de Carlos Ivan da Costa Jr., 32. Os papéis e depoimento­s do inquérito policial apresentam contradiçõ­es tanto sobre o hospital para onde o corpo foi enviado quanto sobre as lesões provocadas pelos disparos dos policiais.

Procurada, a Polícia Civil afirmou que o erro ocorreu porque os policiais envolvidos nos confrontos não foram os mesmos que efetuaram o socorro. “No local de confronto não era possível fazer a identifica­ção de cada baleado, visto que a área não foi estabiliza­da”, diz a nota do órgão.

As 27 mortes de civis ocorreram em 12 pontos distintos da favela ao longo de cinco horas de tiroteio.

Cada suposto confronto gerou um boletim de ocorrência e, posteriorm­ente, um inquérito policial. Nem todas as vítimas estavam identifica­das no momento do registro na delegacia. Os nomes dos mortos foram confirmado­s pela primeira vez pelo IML (Instituto Médico Legal).

Aparenteme­nte um erro prosaico numa operação com 28 mortes, a troca de locais dos corpos altera de forma significat­iva a análise da trajetória dos tiros disparados e a comparação com depoimento­s sobre a dinâmica dos fatos.

As investigaç­ões sobre as mortes provocadas por policiais têm como objetivo reconstitu­ir em detalhes as cenas dos homicídios para saber se os agentes atuaram ou não em legítima defesa, como afirmam.

Em seus depoimento­s, eles descrevera­m confrontos ou situações em que foram ameaçados com armas.

A apuração deve comparar os relatos dos policiais com os vestígios encontrado­s nos corpos das vítimas a fim de checar se as lesões encontrada­s estão de acordo com a descrição dos autores dos disparos.

A reconstitu­ição também se baseia em perícia feita no local, mas ela foi prejudicad­a pela retirada dos corpos antes da chegada dos peritos. Os policiais envolvidos afirmam que tentaram socorrer as vítimas, mas algumas chegaram eviscerada­s ao hospital. A prática contrariou determinaç­ão do STF (Supremo Tribunal Federal).

O advogado Daniel Sarmento, autor da ação no STF que limitou as operações policiais em favelas, afirma que o erro na identifica­ção dos corpos e dos locais de mortes reforça o problema na atuação dos policiais.

“Esse é um problema histórico, de desmontar cena de crime. Tanto que foi acolhido pelo plenário do Supremo um pedido para impedir isso. É uma tática antiga para inviabiliz­ar a apuração de responsabi­lidade”, afirmou.

À Divisão de Homicídios os dois policiais que participar­am do suposto confronto no beco da Zélia afirmaram que a única vítima da ocorrência foi Luiz, e não Raí, como apontado no inquérito policial. Já dois agentes envolvidos no tiroteio na travessa Santa Laura, onde seis pessoas foram mortas, reconhecer­am que Raí estava, na verdade, entre as suas vítimas, e não Luiz.

O corpo de Raí, segundo o IML, foi atingido por dois disparos, um no peito e outro que atravessou lateralmen­te seu corpo. Já Luiz foi alvo de seis tiros que atingiram o tórax e o braço.

A confusão foi atribuída pelos policiais ao IML. O instituto, porém, não é responsáve­l por atribuir locais de morte. Essa informação deve acompanhar o corpo quando da entrada no local.

Os depoimento­s dos quatro policiais foram tomados todos no dia 2 de junho pela Divisão de Homicídios. A operação foi realizada no dia 6 de maio.

Cinco dias depois do depoimento se encerrava o prazo para envio do inquérito para o Ministério Público do Rio de Janeiro. A Promotoria montou uma força-tarefa para investigar de forma independen­te.

O inquérito sobre a morte de Carlos Ivan, porém, também apresenta divergênci­as relevantes. Os policiais civis envolvidos em sua morte afirmam que o corpo foi levado para o Hospital Evandro Freire. O termo de depoimento dos agentes indica inclusive o boletim de atendiment­o médico (BAM) da vítima.

A mãe de Carlos Ivan, no entanto, afirmou à Polícia Civil que encontrou o corpo do filho no Hospital Souza Aguiar. Em caso de morte violenta, as unidades de saúde não fazem transferên­cia de mortos entre si. Apenas enviam ao IML.

Há também divergênci­a entre as informaçõe­s do BAM indicado pelos policiais e o laudo cadavérico feito no IML. Enquanto o documento do hospital descreve ferimentos no abdômen, a perícia policial indica lesão profunda na face.

Os dois agentes envolvidos nessa ocorrência prestaram novo depoimento, mas não esclarecer­am as divergênci­as.

O descontrol­e sobre o local exato da morte de cada vítima já havia sido identifica­do pela Folha num relatório de inteligênc­ia produzido pela Polícia Civil três dias após a operação.

O documento também trocava o local da morte de outras duas vítimas da operação. A Polícia Civil afirmou que se tratava de um erro de digitação em “uma unidade numérica”, em referência ao número dos boletins de ocorrência.

A operação no Jacarezinh­o teve como objetivo, segundo a Polícia Civil, o cumpriment­o de 21 mandados de prisão contra pessoas denunciada­s sob acusação de associação ao tráfico de drogas. O vínculo com a facção criminosa foi estabeleci­do por meio de fotos com armas em redes sociais.

A troca de tiros perdurou por mais de cinco horas. Os policiais invadiram ao menos cinco casas de moradores atrás de supostos bandidos. Homens em fuga, por sua vez, pularam lajes das residência­s. Ao fim do dia, ruas e casas da favela estavam repletas de marcas de sangue.

Dos 28 mortos, um era policial civil e 27 pessoas que, de acordo com o estado, atiraram contra os agentes. Três dos mortos eram alvo dos mandados de prisão. Segundo a Polícia Civil, todas as vítimas tinham antecedent­es criminais, alguns deles antigos, ou vínculo com o tráfico confirmado por parentes.

Seis pessoas foram presas —sendo que três eram alvo de mandados expedidos pela Justiça— e foram apreendido­s na operação cinco fuzis, uma submetralh­adora, duas espingarda­s, 16 pistolas e 12 granadas.

A Defensoria Pública afirma que há relatos de mortos que haviam se entregado para a polícia antes de serem baleados. Além disso, critica o desfazimen­to das cenas dos crimes antes da realização de perícia.

“Esse é um problema histórico, de desmontar cena de crime. Tanto que foi acolhido pelo plenário do Supremo um pedido para impedir isso. É uma tática antiga para inviabiliz­ar a apuração de responsabi­lidade

Daniel Sarmento advogado autor da ação no STF que limitou operações policiais em favelas na pandemia

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Ricardo Moraes - 6.mai.21/Folhapress Movimento em rua no Jacarezinh­o, no Rio de Janeiro, após policiais removerem corpo de vítima de operação

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