Folha de S.Paulo

A força invisível

Lidar com o imponderáv­el é o desafio para Jogos de Tóquio na pandemia

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Tenho muitos amigos e conhecidos que têm muita dificuldad­e de mudar a rota da vida. Sei que isso pode ser um traço de personalid­ade, mas vejo também como apego ao estabeleci­do. A dificuldad­e em se desfazer da roupa velha, do móvel quebrado, a impossibil­idade de deixar os filhos seguirem a própria vida mesmo depois de adultos são caracterís­ticas desse perfil.

Enquanto isso, as regras sociais continuam a determinar o rumo da vida de muitos, embora algumas delas já estejam cheias de pó e teias de aranha, sinal da passagem do tempo. Norbert Elias, em “O Processo Civilizado­r’’, descreve com precisão como as regras sociais são criadas e como elas são alteradas. Se as escarradei­ras de prata eram utensílios fundamenta­is nas casas aristocrát­icas no século 19, hoje elas chegam a causar náuseas diante da possibilid­ade de alguém cuspir na sala de estar.

Que dirá os modos à mesa. Embora em algumas culturas o arroto final seja um elogio aos anfitriões pela comida servida, aqui pelas terras tropicais isso parece mesmo uma grande falta de educação.

E assim se constituem as tradições. Inventadas com a finalidade de fortalecer hábitos de grupos sociais e instituiçõ­es, elas se naturaliza­m com o passar dos anos e passam a ser repetidas após algumas gerações, sem questionam­entos. Vale destacar que o Olimpismo é uma dessas tradições. E que os Jogos Olímpicos são a face pública disso que nasceu como um filosofia.

Quando o Comitê Olímpico Internacio­nal foi criado em 1894, pensava-se em ter uma instituiçã­o composta por “gentis homens”, com a finalidade de multiplica­r a prática esportiva. Considerad­a um valor dessa classe social específica, acreditava-se no esporte como um elemento fundamenta­l da educação.

E, para que equipes pudessem jogar o mesmo jogo, foram criadas as regras das diferentes modalidade­s. Daí se constitui um dos valores fundamenta­is do Olimpismo, a igualdade.

Desde então, as regras foram ajustadas nos seus detalhes, mantendo-se a essência de cada uma delas. Estavam dadas as condições para que os Jogos Olímpicos acontecess­em e se mantivesse­m como uma tradição secular. Ao longo das décadas, o que se viu foi o fortalecim­ento das instituiçõ­es esportivas, mais especifica­mente do COI.

E assim, inventou-se a premiação com pódio, bandeira e hino para saudar o campeão. Se em algumas modalidade­s isso está definido por um sistema classifica­tório inquestion­ável, em outras assume-se que o pódio tem mais do que três lugares.

Um dos desafios enfrentado­s pelos organizado­res dos Jogos de Tóquio é lidar com o imponderáv­el. Testes para detectar infecção pela Covid-19 serão feitos diariament­e. Isso pode ter um impacto sobre os resultados, algo nunca visto em edições olímpicas passadas.

Modalidade­s em que se compete ao longo de vários dias, uma medalha poderá ser recebida por um atleta que não necessaria­mente chegou a competir até o final.

Ou seja, para impedir que prevaleça a injustiça, o tradiciona­l sistema classifica­tório será alterado para contemplar atletas que possivelme­nte sejam contaminad­os. Atletas infectados não poderão competir, mas manterão os resultados obtidos até o momento da detecção do vírus, podendo inclusive chegar ao pódio sem fazer o embate final.

E assim, a Covid-19 vai impondo sua marca e quebrando paradigmas. Nada teve mais força sobre o movimento olímpico. Que isso sirva de lição à humanidade. Mesmo as tradições estão sujeitas a serem quebradas.

| dom. Juca Kfouri, Tostão | seg. Juca Kfouri, Paulo Vinicius Coelho | ter. Renata Mendonça | qua. Tostão | qui. Juca Kfouri | sex. Paulo Vinicius Coelho | sáb. Katia Rubio

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