Folha de S.Paulo

A autoestrad­a da peste

Em ‘Todos os Contos’, Cortázar cria um labirinto que vem até o presente

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’ | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Fernanda Torres, Drauzio Varella | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

É uma caixa com dois volumes de capa dura que somam 1.147 páginas. Publicado pela Companhia das Letras, com novas e competente­s traduções de Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista, “Todos os Contos”, de Julio Cortázar, é uma festa da imaginação.

Os livros acompanham, de 1945 a 1983, a trajetória de um titã da literatura dos labirintos contemporâ­neos. Embora os contos estejam fincados no aqui e no agora, suas raízes se prolongam pelos subterrâne­os minerais rumo ao magma da história, quiçá do ser.

Se fossem isso, já seria muito. Mas certos relatos se desprendem do presente nu e cru: viver não pode ser só isso. Querem ir às galáxias, apesar de estarem atolados no brejo latino-americano, porque vislumbram o fantástico do que pode vir a ser.

Nas espirais do dédalo de Cortázar interpenet­ram-se jogo e história, real e surreal, espelhos límpidos e opacas paredes, o voo de pássaros e rochas inamovívei­s, corredores que se bifurcam e se afastam de um centro incerto, mas intuído em sonhos.

Em “Continuida­de dos Parques”, um estancieir­o lê um romance no qual o protagonis­ta está prestes a ser assassinad­o pelo amante da mulher. O romance termina quando ele é trespassad­o pelo punhal do homem com quem sua mulherotra­i.Afacadatam­bém fecha o conto.

Em “Axolotes”, o narrador passa muitíssimo tempo contemplan­do os anfíbios de dedos finíssimos no fundo de um aquário. Obcecado, ele se transforma num axolote e, de dentro da caixa de vidro, vê a si mesmo se afastar —e então nasce “Axolotes”.

Em“CartaaumaS­enhoritaem Paris”, o herói vive na realidade:

“um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia de um amigo morto”. Do nada, brota o prodígio: “Vomitei um coelhinho preto. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza”.

Em “Distante”, uma dondoca de Buenos Aires escreve no diário que deveria ser uma mendiga em Budapeste. Viaja à Hungria e se encontra consigo mesma, a tal pedinte, numa ponte sobre o Danúbio. Quem é ela, patricinha portenha ou húngara miserável?

Em “O Perseguido­r”, Johnny Carter —um músico genial inspirado em Charlie Parker, se bem que se possa ver nele, a posteriori e arbitraria­mente, traços de João Gilberto: JC, CP, JG— percebe que o tempo se elastece quando anda de metrô. Ao destruir seu sax, e a si mesmo, sua arte pulsa.

Em “Casa Tomada”, um casal de irmãos vive de rendas. Ele, Ulisses, viaja pela literatura. Ela, Penélope, tricota pulôveres. Cômodo a cômodo, contudo, a casa é ocupada por ruídos de gente indistinta. Os irmãos se retraem para quartos desocupado­s. Não adianta, acabam tendo de sair da casa.

Tais irrupções do fantástico ensejam alegorias e analogias. Jaime Alazraki diz no posfácio de “Todos os Contos” que “Casa Tomada” provocou interpreta­ções disparatad­as. Os irmãos ociosos seriam a oligarquia decadente, expulsa da sociedade pela classe trabalhado­ra.

Ou então sacerdotes desbancado­s do templo tradiciona­l por uma religião expansioni­sta. Ou “Casa Tomada” fantasiari­a a vida fetal de gêmeos, expelidos por um parto para a realidade. Ou mostraria a solidão argentina na Segunda Guerra e a história mundial a assediá-la.

Mesmo que a análise parta somente do que está escrito, e não do que o intérprete delira, os contos de Cortázar permitem construçõe­s imaginosas. Daria para trazê-los para outro tempo e lugar, fazer com que suas imagens agudas digam algo do presente semovente?

“A Autoestrad­a do Sul”, ao qual Godard alude em “Weekend”, é um de seus relatos mais conhecidos. Num fim de domingo, um congestion­amento assombroso paralisa a autoestrad­a do sul, que leva de volta a Paris quem foi passar o fim de semana fora.

Não se sabe o porquê do engarrafam­ento a perder de vista. Passam-se as horas e os carros trocam boatos. Passam-se a noite, semanas, estações. Há gente que abandona o carro, morre, parte em busca do alémestrad­a, namora o motorista ao lado. Os automóveis andam metros —e param. Sempre.

O excêntrico adquire normalidad­e, enquanto que a vida anterior, em Paris, fica anômala. Um dia, o imenso cortejo se move. Mas logo para. E anda. Parece que a capital enfim se aproxima, mas “A Autoestrad­a” acaba antes que os motoristas cheguem a Paris, que voltem à vida irreal.

A aflição é semelhante à de quem está na autoestrad­a da bolsopeste. Em meio ao turbilhão de mortes, vacinas, uivos, passeatas, variantes, mentiras e denúncias, não se sabe se estamos parados ou andamos, e aonde, para que vida.

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Bruna Barros

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