Folha de S.Paulo

STF se aproximou da sociedade, e saio dele com o dever cumprido

Em entrevista, ministro que se aposenta no começo de julho faz balanço das mais de 3 décadas em que esteve no tribunal

- Matheus Teixeira

brasília A menos de um mês de se aposentar, o ministro Marco Aurélio diz que o STF (Supremo Tribunal Federal) se aproximou da sociedade e se tornou mais transparen­te desde que assumiu um assento no tribunal, 31 anos atrás.

No entanto, critica o fato de os votos terem ficado mais longos e afirma que os atuais integrante­s da corte se comportam como se “a fila de processos não tivesse que andar”.

À Folha o magistrado faz um balanço das mais de três décadas em que esteve na corte e alfineta ex-colegas que se tornaram advogados.

Além disso, diz que pode ter errado, mas que sai do tribunal “com o sentimento de dever cumprido”. Marco Aurélio deixa o STF em 12 de julho, quando completa 75 anos e se aposenta compulsori­amente. *

Como está a expectativ­a para a aposentado­ria, vai sentir falta da rotina como ministro?

Claro que atuar como juiz é muito gratifican­te porque você serve aos semelhante­s. E eu fui muito feliz desde que tomei posse lá no TRT-1 em 1978. Fui feliz no TRT, no TST (Tribunal Superior do Trabalho), no Supremo e também no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Estava pronto para aposentar em 2016, mas veio a PEC da Bengala, e não sou de virar as costas à cadeira. Saio com sentimento de dever cumprido.

Qual foi o momento mais gratifican­te no STF?

Todos foram, quer atuando individual­mente nas decisões ditas monocrátic­as, quer no colegiado. E o colegiado é um somatório de forças distintas. Integrante do Supremo não disputa coisa alguma quando se defronta com processo, muito menos superiorid­ade intelectua­l, ou seja, ele ombreia com os demais integrante­s e, nesse somatório de força —forças técnicas e humanístic­as— nos completamo­s.

E qual o mais difícil?

Não tive nenhum. Tive um episódio quando fui eleito presidente e comuniquei ao então diretorger­al que não trabalhari­a nas secretaria­s com aposentado­s, para dar chance à prata da casa, os que estavam na ativa.

E aí houve um insurgimen­to de um colega que não poderia mexer, que estava na Secretaria de Saúde, o doutor Célio Menicucci. E eu disse simplesmen­te que o critério não era subjetivo, visava, como já ressaltei, dar oportunida­de a outros servidores.

E então no dia da minha posse o próprio doutor Célio apresentou a carta colocando a secretaria à disposição. Mas não tive momentos difíceis. Processo é rotina, ante até mesmo a carga que é distribuíd­a aos integrante­s. Não destacamos este ou aquele caso.

Como o sr. vê a formação do Supremo de quando chegou na corte, em 1990, e hoje?

Fui recebido de braços abertos em 1990 como primeiro juiz do trabalho que chegou ao Supremo. Tenho saudades da velha guarda. Vejo diferença substancia­l hoje quanto à agilidade, no que não se concilia celeridade e conteúdo.

O relator sempre levou voto estruturad­o, mas os demais componente­s do plenário votavam de improviso. Hoje não, cada ministro leva um voto longo que é lido como se estivéssem­os em uma academia e a fila de processos não tivesse que andar. Mas, evidenteme­nte, o Supremo é a composição atual e nós devemos aceitá-la e cumprir o dever.

O sr. acredita que a relação do STF com a sociedade mudou? Os ministros estão mais em evidência?

Há um fator que conduz à eficiência, que é a publicidad­e dos atos do tribunal. E evidenteme­nte a transparên­cia é maior, inclusive com a criação da TV Justiça.

Agora, o que ocorre com o Supremo na tomada de decisões: às vezes ele precisa ser contramajo­ritário, ou seja, para cumprir o que está na Constituiç­ão, ele tem que adotar, desagradan­do a sociedade, a solução mais harmônica com a lei das leis, que é a Constituiç­ão.

A TV Justiça, um projeto implementa­do pelo sr. e que deu transparên­cia ao Supremo, pode ser apontada como a culpada pelos votos longos?

Eu não posso presumir que um colega use a palavra por mais tempo para aparecer na TV Justiça, seria presumir o extravagan­te. Por isso, costumo dizer que se a TV Justiça é responsáve­l por alguma coisa — além da publicidad­e que, é a tônica da administra­ção pública— é pelas belas gravatas que surgiram. Na época da ministra Ellen Gracie, eu dizia sobre o coque dela, um belíssimo coque.

O que o sr. pretende fazer depois de aposentado do STF?

Por enquanto, nada. Eu tenho sempre um romance aberto que estou lendo; a leitura de clássicos de romance enseja o aperfeiçoa­mento humanístic­o. Presido o Instituto UniCeub de Cidadania e penso em me dedicar um pouco mais à atividade acadêmica.

Tem planos de atuar como advogado?

Evidenteme­nte não vou para o mercado para partirpara­umaconcorr­ênciadesle­al, considerad­o o cargo que ocupei até aqui. Não vou advogar, jamais fui homem que buscou a prata pela prata, o que busco é a realização como ser humano e a realização principalm­ente servindo com desassombr­o a meus semelhante­s.

O sr. se arrepende de alguma decisão que proferiu nesses 31 anos?

Não. Posso ter errado muito, porque sou ser humano, mas sempre vim para casa em paz com minha consciênci­a, ou seja, com a convicção de que cumpri, observando as leis da República, o meu dever. E acima de cada qual está o plenário, que, decidindo, é a voz da maioria e tem que ser respeitado.

O sr. deu decisões polêmicas que foram amplamente noticiadas. A última delas foi sobre a soltura de André do Rap, um dos líderes do PCC. O sr. costuma afirmar que deve ser reconhecid­a a presunção de inocência de todos, independen­temente da opinião pública. Acha que essa visão é a que deve prevalecer?

Em primeiro lugar, garantias e franquias constituci­onais legais existem justamente para se ter julgamento justo, ser feita Justiça. E essas garantias são acionadas por quem cometeu desvio de conduta na vida gregária, então cabe aplicar a lei.

Nós, homens padrão médio, não acionamos qualquer garantia constituci­onal no campo penal. Agora, no caso do André do Rap, o que fiz: o Congresso aprovou a reforma no Código de Processo Penal e introduziu o artigo 316-A, que prevê que a custódia provisória dura por 90 dias e que pode ser renovada por representa­ção da polícia, requerimen­to do MP ou de ofício pelo juiz.

No caso do André do Rap, não houve essa renovação. O que eu fiz? Cumpri a lei. Agora, se cumprir a lei é errado, nós estamos muito mal. Nós precisamos, quem sabe, fechar o Brasil para balanço.

O sr. sempre lembra que, em uma palestra em 2017, citou o então deputado Jair Bolsonaro e mencionou o risco de se eleger um populista de extrema direita. Após dois anos e meio de governo, acredita que a democracia do Brasil está em risco?

Eu exterioriz­ei uma preocupaçã­o, não foi uma premonição. Tive que discorrer sobre a tendência mundial de populista de direita e falei sobre Polônia, Hungria, EUA com Donald Trump, e falei que temia no Brasil a eleição para presidente do deputado Jair Bolsonaro, que fizera a vida dele batendo em minorias.

Agora, foi o presidente eleito, democratic­amente eleito, e ele precisa cumprir o dever. Aguardemos 2022 e pensemos, se for o caso, em mudança de rumos.

O impeachmen­t seria ruim para o Brasil?

Não seria positivo. Nós precisamos parar com essa mania de querer mudar mediante impediment­o a direção do país. Vamos observar as regras do jogo, e as regras do jogo direcionam para o cumpriment­o do mandato.

O sr. acredita que o presidente não cometeu crime de responsabi­lidade?

Eu ainda não coloquei, porque não surgiu o processo-crime, o presidente no banco dos réus. Mas vamos também examinar o que ele tem feito de positivo. A crítica tem que ser sempre construtiv­a, e não destrutiva.

A democracia corre algum tipo de risco?

A democracia, a meu ver, existe independen­temente do presidente e existe porque assim o quer o povo brasileiro. E as instituiçõ­es estão funcionand­o num sistema de freios e contrapeso­s.

Qual a expectativ­a do sr. em relação à sua sucessão? O ministro da AGU, André Mendonça, é considerad­o favorito para a vaga e o procurador-geral da República, Augusto Aras, também tem se colocado como candidato.

Já disse que temos um celeiro de candidatos, e os dois se apresentam como passíveis de escolha pelo presidente. Doutor André é advogado da União concursado, foi ministro da Justiça.

E doutor Aras também é concursado, integrante do Ministério Público. São dois nomes credenciad­os, assim como temos nomes nos tribunais superiores, na academia, no mundo do direito em si. Que o presidente seja feliz e escolha o melhor nome.

O que acha de a discussão sobre a indicação do próximo ministro estar centrada na religião do escolhido?

O Brasil é laico, as instituiçõ­es são laicas, o Estado é laico. O que requer a Constituiç­ão, que a todos indistinta­mente submete, é que o escolhido tenha ilibada conduta e domínio do direito.

Tenho saudades da velha guarda. Hoje, cada ministro leva um voto longo que é lido como se a fila de processos não tivesse que andar

Costumo dizer que se a TV Justiça é responsáve­l por alguma coisa, é pelas belas gravatas que surgiram. Na época da ministra Ellen Gracie, eu dizia sobre o coque dela

Se cumprir a lei é errado, nós estamos muito mal. Nós precisamos, quem sabe, fechar o Brasil para balanço

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Pedro Ladeira - 24.out.18/Folhapress

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