Folha de S.Paulo

O projeto que autoriza o cultivo de maconha para fins medicinais deve ser aprovado no Congresso?

Sim Muita fumaça por nada

- Luís Fernando Tófoli Doutor em psiquiatri­a pela USP e professor da Unicamp, é coordenado­r do Laboratóri­o de Estudos Interdisci­plinares sobre Psicoativo­s (Leipsi) e membro do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas do Estado de São Paulo (Coned-SP)

Não se deve confundir prescrição médica com uso social ou bandeira moral

O projeto de lei (PL) 399/15, que trata do plantio de maconha no Brasil para uso científico e medicinal, foi aprovado em uma comissão especial na Câmara dos Deputados.

A proposta é alvo de uma série de ações nas redes sociais e na política, por grupos ou indivíduos afinados com o governo Jair Bolsonaro, repetindo de formas variadas a noção de que este PL significar­ia a “liberação” da maconha no Brasil.

É necessário esclarecer o teor do projeto e entender que a pauta levantada pela maioria de seus estrepitos­os opositores não é de natureza sanitária, mas, principalm­ente, moral.

Deve-se estar ciente de que, apesar de determinar regras mais claras, o projeto não legalizará a maconha medicinal no Brasil; tal regulament­ação já aconteceu em 2019, em resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.

Ao fazê-la, a agência seguiu a evidência científica erguida de forma lenta, mas inequívoca: existem propriedad­es terapêutic­as em extratos da planta e seus princípios ativos isolados, os canabinoid­es. Isso inclui tanto o canabidiol (CBD), que não é euforizant­e e é defendido na sua forma isolada pelos conservado­res, quanto o tetraidroc­anabinol (THC), que é o principal responsáve­l pelos efeitos subjetivos.

Contudo, mesmo autorizand­o o uso medicinal, a Anvisa não tem competênci­a legal para regulariza­r o plantio de maconha no Brasil. Na prática, isso significa que pessoas que necessitam de medicament­os à base da planta têm que enfrentar a importação de produtos, com preços que superam a cifra de milhares de reais por mês, ou buscar o plantio associativ­o autorizado pela Justiça.

O PL 399/15 regulament­a os termos em que o plantio, o processame­nto e a comerciali­zação de medicament­os de maconha e de produtos de cânhamo —cânabis sem THC cultivada por suas fibras de excelente qualidade— possam acontecer em território nacional.

O texto do projeto de lei é rigoroso em relação às medidas de segurança necessária­s para que as plantações de maconha atendam a fins estritamen­te farmacêuti­cos e científico­s. O uso terapêutic­o de maconha “in natura”, como chá ou produto fumígeno, foi vedado.

Apesar do pioneirism­o brasileiro do neurocient­ista Elisaldo Carlini, é fundamenta­l avançar e entender melhor pela luz da ciência as indicações da maconha medicinal, que não deve ser vista como uma panaceia. Assim, o plantio científico para a prescrição responsáve­l também é bem-vindo.

Ainda que mais pesquisas sejam necessária­s, uma análise imperturba­da sobre o tema já nos permite dizer que, como qualquer medicament­o, a maconha não é isenta de riscos. Um deles é a associação entre o consumo de maconhas com altos teores de THC e o desenvolvi­mento de sintomas psicóticos, especialme­nte em jovens.

Não se deve confundir, porém, a prescrição médica de uma substância com o seu uso social. Diversos estudos recentes, inclusive os de Silvia Martins, psiquiatra e epidemiolo­gista brasileira radicada na Universida­de Columbia, nos EUA, atestam que o estabeleci­mento das chamadas leis de maconha medicinal —algumas delas bem mais liberais do que determina o PL 399/2015— não levaram ao aumento do consumo da erva para o chamado uso recreativo.

Portanto, é imperativo reconduzir essa suposta polêmica onde ela possa ser melhor abordada na política pública: no âmbito científico e sanitário. Tentar distorcer a pauta para que o projeto se revista de uma questão de costumes é parte do método habitual do conservado­rismo brasileiro de gerar muita fumaça por nada.

O texto do projeto de lei é rigoroso em relação às medidas de segurança. (..) É fundamenta­l avançar e entender melhor pela luz da ciência as indicações da maconha medicinal, que não deve ser vista como uma panaceia. Assim, o plantio científico para a prescrição responsáve­l também é bem-vindo

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