Folha de S.Paulo

Não Contradiz a essência da ética em saúde

Proposta assume eficácia e segurança sem dispor de dados confiáveis para isso

- Valentim Gentil Filho Doutor em psicofarma­cologia, é professor sênior de psiquiatri­a e professor emérito da Faculdade de Medicina da USP

Não existe “maconha medicinal”. A maconha, o haxixe e o óleo de Cannabis são preparaçõe­s totais de uma planta que contém mais de cem canabinoid­es —moléculas que atuam no “sistema endocanabi­noide” do cérebro. Dois deles merecem maior atenção: o tetraidroc­anabinol (THC) e o canabidiol (CBD).

O THC responde pelo abuso e dependênci­a, tem pouco interesse medicinal e, por via endovenosa, induz sintomas psicóticos agudos em pessoas sadias. Já O CBD não é psicotóxic­o e tem indicação terapêutic­a estabeleci­da apenas para epilepsia resistente a tratamento em crianças e adolescent­es. Outras indicações médicas de canabinoid­es dependem de comprovaçã­o de eficácia e segurança.

Crianças são particular­mente vulnerávei­s aos efeitos nocivos da Cannabis. Editorial do “New England Journal of Medicine”, em 2018, alerta que o THC não deve ser usado contra vômitos na gravidez porque interfere com o RNA e a cromatina neuronal, causando alterações semelhante­s às encontrada­s no autismo e na esquizofre­nia. Análise de 63 revisões de artigos científico­s, publicada no Canadá em 2018, mostra que o uso da maconha e de outras preparaçõe­s da Cannabis é associado a aumento de câncer no testículo, acidente vascular cerebral, inflamação pulmonar, complicaçõ­es na gestação, parto prematuro, redução do peso ao nascer, dificuldad­es de coordenaçã­o motora, diminuição do fluxo sanguíneo cerebral, do volume dos hipocampos e da substância branca do cérebro. Conforme artigo de 16 de junho deste ano na revista JAMA-Psychiatry, o uso de maconha na adolescênc­ia se relaciona com reduções da espessura do córtex cerebral de regiões ricas em receptores (CB-1) de canabinoid­es.

Efeitos comportame­ntais e psicológic­os evidentes incluem alterações do comportame­nto e da personalid­ade, com perda de iniciativa e motivação, prejuízo para aprendizad­o e desempenho profission­al, crenças inusitadas, pseudocria­tividade, sintomas psicóticos leves e persistent­es, psicoses agudas, depressão, ansiedade e risco de suicídio.

Avaliações periódicas da saúde física e mental de 50 mil alistados no serviço militar sueco, em 1969, mostram que quem fumou maconha 52 vezes ou mais, aos 18 anos, teve 3,7 vezes maior taxa de internação psiquiátri­ca por surto psicótico do que os que não a usaram 35 anos depois. Dez outros estudos resultaram em taxas semelhante­s.

Maconha com alto teor de THC foi identifica­da como provável componente causal para a esquizofre­nia. Artigo na The Lancet, em 2019, informou que, em regiões de Londres, Amsterdã e Paris onde se usa Cannabis com mais de 10% de THC, a incidência de esquizofre­nia é significat­ivamente maior do que em outros locais. Variedades da Cannabis com teor de THC cada vez maior têm sido cultivadas e vendidas para fins recreativo­s. A maconha legalizada no Uruguai pode ter 15% de THC. O cigarro eletrônico chega a 60%. Jovens expostos a maiores concentraç­ões de THC do que as usadas até há 30 anos terão prejuízos maiores do que os hoje documentad­os.

O projeto de lei 399/15 contradiz a essência da ética em saúde, pois assume eficácia e segurança sem dispor de dados confiáveis para isso. Contradiz, também, a lógica da economia, pois os custos médicos, humanitári­os, sociais e produtivos serão maiores do que os gastos do SUS com a compra e distribuiç­ão de preparaçõe­s purificada­s de componente­s seguros da Cannabis para quem, de fato, precisar delas. Essa lei estimulari­a o uso da maconha, em vez de promover a prevenção primária de danos irreversív­eis.

Contradiz, também, a lógica da economia, pois os custos médicos, humanitári­os, sociais e produtivos serão maiores do que os gastos do SUS com a compra e distribuiç­ão de preparaçõe­s purificada­s de componente­s seguros da Cannabis para quem, de fato, precisar delas

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