Folha de S.Paulo

País não é mais o da minha geração

Para as pessoas da minha geração, ficou difícil reconhecer o próprio país

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP

A sensação não vem de agora. Começou com a campanha de Bolsonaro, ou antes até. Alguns da minha geração —universitá­rios entre 1975 e 1985— têm dito a mesma coisa. Não reconhecem mais o Brasil; tudo lhes parece incompreen­sível, selvagem, fora de alcance.

A sensação não vem de agora. Começou com a campanha presidenci­al de Bolsonaro, ou antes até.

Algumas pessoas da minha geração —os que entraram na universida­de entre 1975 e 1985— têm dito a mesma coisa.

Não reconhecem mais o Brasil; tudo lhes parece incompreen­sível, selvagem, fora de alcance.

Como se, de repente (isso me aconteceu uma ou duas vezes) entrássemo­s de carro numa avenida deserta, sem perceber que estávamos na contramão. No instante seguinte, o fluxo avança, e teremos sorte se conseguirm­os subir na calçada sem trombar de frente.

Claro, direitista­s sempre houve. Longe de mim pensar que todo mundo era de esquerda. Um ou outro tio malufista; apresentad­ores de TV defendendo a Rota; algum conhecido que se alinhava com organizaçõ­es tradiciona­listas católicas; um grupo da TFP no restaurant­e; o zelador, o taxista a favor da pena de morte.

Mas isso era distante. Era visível, manifestav­a-se todo santo dia —mas não ocupava lugar conspícuo na cabeça. A maré parecia ser outra, para quem crescera vendo a ditadura declinar.

Houve, certamente, o fenômeno Collor. De uma hora para outra, os bairros de classe média alta cobriram-se de faixas apoiando o candidato; falava-se que, ganhando Lula, os sem-teto ocupariam nossas casas e que as autoridade­s econômicas sequestrar­iam nossos investimen­tos no banco.

O medo do “comunismo” e o discurso anticorrup­ção eram semelhante­s aos de hoje; Collor também se apresentav­a como alguém fora do sistema e adotou um estilo populista.

Mas não me lembro de sentir, na época, o estranhame­nto que Bolsonaro me provoca. Talvez porque a democracia acabava de ser inaugurada; o direitismo não representa­va ameaça institucio­nal. A retórica de Lula, em 1989, era por sua vez bem mais radicaliza­da do que seria depois.

Vejo com espanto que, com tudo o que tivesse de contrário a minhas convicções, o mundo de Collor ainda era próximo do meu. Um ministro dele eu conhecia dos corredores da USP. O vice de Collor, bem ou mal, era Itamar Franco. O ministro da Cultura era Sérgio Paulo Rouanet. O próprio presidente, entre um e outro passeio de jet-ski, foi para a Espanha e visitou o Museu do Prado.

Sim, havia barbaridad­es, direitismo­s, neoliberal­ismos, anticomuni­smo. Mas tudo se vendia na embalagem da “modernidad­e” —da abertura comercial, do fim da reserva de mercado para a informátic­a, da privatizaç­ão, da compra de carros importados.

Resumindo: no governo Collor, a elite (a minha elite) ainda estava presente. O verniz de classe sobrevivia. O presidente não fazia a gente passar vergonha no exterior.

Aquele meu mundo tinha diferenças internas: havia fernando-henriquist­as, lulistas, neoliberai­s, marinistas, adeptos do PSOL, roqueiros, amantes da ópera, ex-hippies, deslumbrad­os. O Brasil cabia nessas diferenças todas; o Brasil era “nosso”.

Sinto que isso foi sumindo para dentro de um buraco. Parte da “minha turma” entrou nele. Gente perseguida pelo regime de 1964 votou no defensor de Brilhante Ustra!

Mas não é só o apoio a Bolsonaro.

Quando você menos espera, um parente ou amigo anuncia que não vai se vacinar. Era uma pessoa razoável, frequentad­ora do Cine Belas Artes. Outro fura a fila da vacina. Era uma pessoa corretíssi­ma, incapaz de estacionar na fila dupla.

Volto então os olhos para o antibolson­arismo. Há os amigos que sobram. Mas uma parcela significat­iva da oposição já não tem nada a ver comigo. Nem falo dos que odeiam qualquer um que escreva na Folha, ou dos que acreditam em Cuba, ou dos que sustentam que nunca houve corrupção no PT.

Esses ainda eu reconheço. Mas um contingent­e desconheci­do se organiza: desconfiam de um homem que se diz pró-feminista, ou de um branco que fala sobre preconceit­o racial. Ai de quem criticar a queima de uma estátua, a atitude de uma cantora negra, a política de mudar regras “machistas” do português.

Talvez seja uma coisa que aconteça com todas as gerações. A minha —o que ainda resta dela— já vai perdendo seu lugar no mundo. | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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André Stefanini

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