Morre José Ramos Tinhorão
José Ramos Tinhorão, que morreu ontem, levou Marx à pesquisa musical no Brasil e não poupou Tom Jobim e João Gilberto
Historiador da cultura e crítico denso, Tinhorão elevou o patamar da pesquisa musical e contribuiu para a modernização da escrita na imprensa brasileira. Morreu ontem aos 93, por complicações de um AVC sofrido há 2 anos.
RIO DE JANEIRO José Ramos Tinhorão, morto nesta terça em São Paulo, aos 93 anos, depois de complicações de um acidente vascular cerebral sofrido há dois anos, viveu sob a pele dupla de historiador da cultura vigoroso e crítico denso, porém mordaz. Tinhorão elevou a pesquisa musical a um alto patamar e contribuiu para a modernização da escrita na imprensa brasileira.
Nascido em Santos, no litoral paulista, ele se mudou com a família aos nove anos para o Rio de Janeiro, onde estudou direito e filosofia. Em 1952, estreou no Diário Carioca e, mais adiante, integrou a reforma gráfica e editorial do Jornal do Brasil, em 1958 e 1959. De formação marxista, introduziu a análise sociológica em suas críticas musicais com densidade histórica e elevado grau de divergência.
O apelido Tinhorão terminou incorporado ao nome profissional. “O que eu fazia não era crítica, era ensaio. Pegava as coisas no calor da hora e analisava. Claro que é um delírio de grandeza meu, mas só Marx fez isso. Ele ia publicando nos jornais em que colaborava e era aquilo [que publicava em livro], a análise estava feita”, disse a este jornal, em 2014.
Ao longo de cinco décadas, Tinhorão pesquisou em arquivos brasileiros e portugueses para investigar o fenômeno urbano da música popular como tema cultural e fato social. Seus ensaios tinham fôlego e amplitude, abrangendo as modinhas, o nascimento da canção urbana, o fado lisboeta, o rasga (dança negro-portuguesa), o samba, o choro, o congo, o lundu, os cantores de serenatas, os velhos sambistas.
A editora 34 reeditou o conjunto de sua obra, alterando o cenário da recepção dela nos meios acadêmicos. No centro de seu pensamento, estão os livros “Pequena História da Música Popular”, “História Social da Música Popular Brasileira”, “A Música Popular no Romance Brasileiro”, em três volumes, “Os Sons que Vêm da Rua” e “Música Popular - Do Gramofone ao Rádio e TV”. Entre as suas preocupações, estava a influência das mudanças tecnológicas no campo cultural.
Suas polêmicas com os músicos da bossa nova, sem livrar ícones como Tom Jobim e João Gilberto, fixaram uma imagem redutora de crítico ranheta. No calor das brigas, ele se aprofundou mais e mais em suas restrições a vertentes renovadoras da música brasileira nos anos 1950 e 1960.
Segundo Tinhorão, a bossa nova representava, na música popular urbana, o “equivalente sonoro das ilusões de ‘atualização’ socioeconômica brasileira aos padrões do moderno capitalismo da era tecnológica”. Em nome da modernidade, o Brasil passava a rejeitar formas e gêneros populares. A bossa nova representaria uma “surda luta de classes no plano da cultura de massas”. Nessesentido, a classe média rompia com o povo.
“O que João Gilberto fez com o jogo de contratempos rítmicos, que desacentuava as tônicas antes regulares da melodia e do acompanhamento —o que se tornou audivelmente o característico sonoro do balanço da bossa nova—, foi exatamente fornecer esse elemento de montagem que os jazzistas brasileiros precisavam para armar o seu ‘produto nacional’”, ele escreveu num ensaio reunido em “Crítica Cheia de Graça”, da Empório do Livro.
Na Bahia, em 1965, o jovem Caetano Veloso revidou seus ataques à bossa nova e ao seu mestre, João Gilberto. Tinhorão não engoliria da mesma forma o tropicalismo, apontando suas baterias contra a ideia de assimilação de tendências internacionais. No lançamento de “Realce”, de Gilberto Gil, em 1979, ele reprovou o artista por usar “seu carisma sobre grande parte dos jovens da classe média brasileira para fazer o jogo da dominação estrangeira, exatamente como no tempo do tropicalismo”.
Essas refregas não traduzem toda a sua grandeza, mas revelam seu traço de ensaísta independente e afrontador de todas as instituições, cioso de sua liberdade crítica. Era além de tudo um homem monástico, capaz de comprimir livros e discos em minúsculos apartamentos, e entregar todos os seus ganhos monetários à pesquisa musical.
A jornalista Elizabeth Lorenzotti, autora da biografia “Tinhorão, O Legendário”, da Imprensa Oficial, estabelece o seu alcance. “Ele foi um historiador da cultura, em Portugal e no Brasil. Hoje, sim, ele tem reconhecimento. Durante uma época os acadêmicos o chamavam de jornalista. Mas ele era um grande pesquisador, um trabalhador da pesquisa, de desencavar coisas”, diz. Numa ironia contra a Universidade de São Paulo, o crítico comentou com a amiga que “eles comem Tinhorão e arrotam Mário de Andrade”.
Janio de Freitas, colunista deste jornal, lembra sua importância na modernização da imprensa. “Foi o texto mais talentoso e brilhante da nossa geração. Ele deu outra contribuição extremamente importante, que foi encontrar a maneira do texto carioca para nossa geração. Isso foi decisivo para a renovação do jornalismo brasileiro, projetada a partir do Diário Carioca e do Jornal do Brasil. E foi meu primeiro e grande amigo no jornalismo.”
Freitas conta que seu humor áspero criava inimizades. “O Tinhorão era um crítico marxista. E foi anexando à crítica musical esses vieses sociais, econômicos, e abriu uma linha de apreciação da música hoje chamada de raiz, com muitos preconceitos contra a música que ele atribuía a americanos. Mas sempre foi brilhante. Um registro triste a ser feito é que não é no Brasil que ele tem a projeção que merece, mas em Portugal.”
Depois do AVC, Tinhorão passou a apresentar dificuldades de comunicação. Antes disso, ele se dedicava a traçar uma história do erotismo, missão que atribuiu a si quando concluísse seu projeto historiográfico. “Se eu pudesse, passaria o resto da vida escrevendo sobre putaria”, disse a este repórter no boteco Amélia, na Vila Buarque, seu ponto de encontro com amigos.
O velório de Tinhorão acontece nesta quarta-feira, a partir das 10h, no Cemitério dos Protestantes, na rua Sergipe, em São Paulo, e se estende até as 13h, horário de seu enterro. “Morre o homem, fica a fama”, como cantava Ataulfo Alves, uma de suas admirações.
“O que eu fazia não era crítica, era ensaio. Pegava as coisas no calor da hora e analisava ali mesmo. Claro que é um delírio de grandeza meu, mas só Marx fez isso
José Ramos Tinhorão crítico musical e pesquisador
Em seu estudo “Estética Musical”, o musicólogo Carl Dahlhaus mostra que uma história, para ser “da arte”, terá de responder, continuamente, à pergunta sobre “o que é” (tem sido, pode ser) e “o que não é” arte.
Segundo ele seria uma ilusão o historiador da arte considerar possível tratar o seu objeto (a arte) como se ele não dependesse de uma eleição ditada por critérios estéticos, por mais móveis e provisórios que sejam.
Morto nesta terça aos 93 anos, José Ramos Tinhorão resolveu esses pressupostos de forma dogmática e rígida. De maneira crua, para ele haveria uma cultura popular pura, legítima, continuamente massacrada pela “avassalante concorrência de gêneros estrangeiros impostos maciçamente pelos trustes internacionais do disco”, como escreveu em sua “Pequena História da Música Popular”.
Essa idealização do popular —que recusava o estatuto artístico das complexidades do desenvolvimento urbano e autoral até de gêneros como samba e baião— não polemizava com uma visão essencialista ou “aristocrática” de arte, mas com as correntes progressistas, isto é, com as vanguardas e a antropofagia modernista brasileira.
Para fazer isso, a musicologia de Tinhorão tinha de se recusar a falar de música. De fato, sua avaliação da história da música brasileira nunca entra em qualquer engrenagem musical.
Nunca fala do perfil de uma melodia, da superposição dos ritmos, da paleta de acordes; não analisa soluções de instrumentação nem concepções de interpretação. Seu historicismo sociológico musical é insensível às peripécias das artes.
Por outro lado, tais escolhas conceituais —até certo ponto ingênuas— deram espaço à emergência de um pesquisador meticuloso, rigoroso, incansável, amante das fontes primárias, detalhista ao extremo e com capacidade investigativa única na música brasileira.
A despeito das discordâncias, é impossível, para a musicologia brasileira e ibérica, não usar do legado investigativo de Tinhorão.
Um exemplo entre muitos possíveis é que Tinhorão foi o primeiro crítico —em argumento sintetizado por Cacá Machado— a “alertar para o fato de que a habanera foi historicamente muito mais fraca do que a polca na cultura musical brasileira”. Nesses detalhes se ergue sua obra monumental —Tinhorão desfaz equívocos, partilha informação, alinhava temas que ninguém havia parado para se debruçar com atenção.
Em “Domingos Caldas Barbosa: O Poeta da Viola, da Modinha e do Lundu”, um de seus trabalhos mais espetaculares, levanta mais de 200 páginas sobre o filho de português com escravizada que nasceu no Rio de Janeiro em 1740 e morreu em Lisboa em 1800.
Ele mostra como esse pioneiro da canção popular brasileira encantou a Europa ao incorporar à linguagem dominante da poesia árcade portuguesa os elementos poéticos afrobrasileiros. Estariam suas fusões sonoras imunes às impurezas do capitalismo?