Folha de S.Paulo

Licença para delinquir

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

É alentador constatar que a Justiça tenta enfim traçar uma linha vermelha para o vandalismo institucio­nal de Bolsonaro; é exasperant­e verificar que o presidente não se intimida e continua com seus ataques. Adoraria dizer que o Judiciário triunfará, mas não estou seguro disso.

O problema é que, no âmbito penal, a Justiça pode pouco contra o chefe do Executivo. Se entrarem numa disputa tipo cabo de guerra, o presidente ganha. O pecado original está na Constituiç­ão, mais especifica­mente no § 4 do artigo 86, que determina que o presidente, na vigência de seu mandato, não seja responsabi­lizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

A linguagem asséptica do texto constituci­onal esconde o alcance do dispositiv­o, que, na interpreta­ção que lhe vem sendo dada, estabelece que o presidente da República não pode ser preso nem se esquarteja­r um desafeto ao vivo na televisão. Esse seria um ato estranho a suas funções, pelo qual ele só responderi­a ao término do mandato. Se o ato não for estranho a suas funções —imaginemos corrupção ou prevaricaç­ão—, a situação melhora, mas não muito. Nesse caso, o mandatário pode ser responsabi­lizado, mas só se a Câmara autorizar a abertura do processo. E precisa fazê-lo por maioria de 2/3.

A Constituiç­ão não proíbe a adoção de medidas cautelares diferentes da prisão —uma ordem para que ele não se pronuncie sobre voto impresso, por exemplo. Mas, se ele não acatar, não há muito que se possa fazer, já que a desobediên­cia dificilmen­te vira processo. Na esfera eleitoral, a rota é menos pedregosa. O TSE tem em tese envergadur­a para torná-lo inelegível no próximo pleito, embora eu ache difícil que se chegue a esse ponto.

Esquecendo Bolsonaro, penso que é preciso calibrar melhor as imunidades presidenci­ais. Nosso sistema é herança de tempos em que figuras presidenci­ais preferiam cometer suicídio a ver-se investigad­as por um crime. Não é mais o caso.

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