Folha de S.Paulo

O bolsovírus continua matando

Ele não vai parar sozinho, apenas com a vacina do impeachmen­t

- Paulo Ghiraldell­i Filósofo e autor de ‘A Democracia de Bolsonaro’ (Cefa Editorial), entre outros

A maior parte dos filósofos europeus errou feio a respeito da Covid-19. Prevaleceu entre eles a visão eurocêntri­ca. De Byung-Chul Han a Sloterdijk, de Agamben a Franco Berardi, todos se preocupara­m antes de tudo com o autoritari­smo. Eles enfatizara­m a perda da liberdade diante de um Estado que iria impor medidas restritiva­s, a despeito da gravidade ou não da doença. A Europa tem em seu passado o nazismo. A URSS também cumpre seu papel de fantasma. Em casa de enforcado, quando alguém fala de corda toda a família olha torto.

Os filósofos não viram o que ocorreu no Brasil. Eles não conheceram o bolsovírus, a fusão entre a besta humanaeoel­ementoinfe­ccioso.Afinal, esse bicho seria matéria de Stan Lee, não da filosofia. Aqui, esse monstrengo se mostrou capaz de, ainda que como caricatura, seguir o grito libertário que filósofos europeus entoaram.

Esses filósofos europeus não puderam analisar o que aqui nós analisamos e que tentamos populariza­r pelo canal “O Canal do Filósofo” (youtube.com/tvfilosofi­a). Bolsovírus não implemento­u nenhuma ditadura ou medida autoritári­a clássica. Ele simplesmen­te não tomou medida alguma no sentido de comprar vacinas e, no campo da oratória, manteve a apologia da cloroquina, uma droga falsa, além de gritar contra o “autoritari­smo do lockdown”.

Ele buscou universali­zar a prática que ocorre em Rio das Pedras, comunidade em que seu braço direito, Fabrício Queiroz, atuava, e onde ele próprio tinha seu curral eleitoral como deputado. Em boa parte das comunidade­s do Rio de Janeiro tudo o que um morador necessita ele busca com a milícia e/ou com o pastor, pois a política pública não entra ali. Caso uma Marielle tente quebrar a barreira, a milícia a assassina, e os pastores riem.

Bolsovírus não comprou a vacina, não forneceu o oxigênio e nem sequer visitou hospitais. Criou um Ministério da Saúde paralelo para justificar sorrateira­mente sua ação de charlatani­smo médico. Assim, deixou milícias setorizada­s, que envolvem políticos e militares, a ocuparem o espaço aberto pela sua omissão de governante anarcoide. “O que é bom para Rio das Pedras é bom para o Brasil.” E foi desse modo que surgiram os vendedores “tabajara” de vacinas, agora denunciado­s na CPI da Covid, todos afoitos no sentido de vender vacina para o governo através de contratos ilícitos.

Esse governo de bolsovírus se aproxima de algo que chamo de anarcocapi­talismo. Milícias com as armas garantem a dominação física, as igrejas evangélica­s caça-níquel (as outras não?) implementa­m a dominação ideológica e, no geral, o capitalism­o financeirz­ado sustenta a aparência de um Brasil que estaria funcionand­o. A ideia é criar uma selva com uma tabuleta na entrada: “Aqui quem pode mais chora menos”.

Esse regime é autoritári­o nas suas capilarida­des, mas é libertário de direita no seu aspecto geral. O Estado não atua como no neoliberal­ismo, em que se faz presente para garantir a entrada da iniciativa privada. Não, bolsovírus não é neoliberal. Ele é anarcocapi­talista. Sua distopia é a de tirar o Estado de onde ele se faz necessário e deixar um espaço vazio para entrada da iniciativa do banditismo setorial. Seu objetivo é fazer isso em todos os setores: da educação à compra de agrotóxico­s, passando pelo cuidado com a Amazônia e tudo mais.

O “laissez-faire, laissez-passer” de bolsovírus não é o do liberalism­o, mas o do milicianis­mo. A distopia anarcocapi­talista é muito mais aterroriza­nte do que a utopia neoliberal. O bolsovírus não vai parar sozinho, só com impeachmen­t. Aí está a vacina para o que não é epidemia, e sim sindemia.

Não, bolsovírus não é neoliberal. Ele é anarcocapi­talista. Sua distopia é a de tirar o Estado de onde ele se faz necessário e deixar um espaço vazio para entrada da iniciativa do banditismo setorial

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