Folha de S.Paulo

Lula aconselha ditador da Nicarágua a não ‘abrir mão da democracia’

Fala à TV mexicana é a 1ª vez que o petista critica uma ditadura de esquerda na América Latina

- Patrícia Campos Mello

são paulo O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aconselhou o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, a “não abrir mão” da democracia, em entrevista à TV mexicana na semana passada. É a primeira vez que Lula se posiciona em relação à ditadura na Nicarágua, onde o governo Ortega prendeu 7 candidatos a presidente e outros 24 membros da oposição e da imprensa desde maio deste ano.

O país terá eleições presidenci­ais em novembro, mas a oposição e órgãos internacio­nais denunciam que o pleito não será livre e justo se não houver mudanças. Lula e o PT vêm sendo cobrados a condenar ditaduras de esquerda como a de Nicolás Maduro, na Venezuela, e a de Daniel Ortega, na Nicarágua.

“Se eu pudesse dar um conselho ao Daniel Ortega, daria a ele e a qualquer outro presidente. Não abra mão da democracia. Não deixe de defender a liberdade de imprensa, de comunicaçã­o, de expressão, porque isso é o que favorece a democracia”, disse à jornalista Sabrina Berman, do Canal Onze do México.

Ortega vai concorrer a seu quarto mandato consecutiv­o em novembro, após seu governo ter aprovado uma mudança na Constituiç­ão em 2014 que aboliu o limite de dois mandatos (consecutiv­os ou não) para candidatos.

Indagado pela jornalista mexicana sobre o que achava da Nicarágua, “um modelo de esquerda que arrasa a democracia”, segundo ela, Lula respondeu: “Faz dez anos que não tenho contato com a Nicarágua, não sei muito bem o que está acontecend­o lá. Mas tenho informaçõe­s de que as coisas não andam nada bem por lá”.

Segundo ele, “na Nicarágua, seria bom ter alternânci­a de poder”. “Eu dizia ao [Hugo] Chávez, dizia ao [Alvaro] Uribe: toda vez que um governante começa a se achar insubstitu­ível e começa a se achar imprescind­ível, está surgindo um pouco de ditadura naquele país”, ele afirmou.

O ex-presidente citou que acabou seu segundo mandato, em 2010, com 87% de bom e ótimo nas pesquisas de aprovação popular. “Não aceitei um terceiro mandato, sou amplamente favorável à alternânci­a de poder”, disse.

Para analistas, a mudança no discurso de Lula é resposta às pressões políticas. “A carta pedindo o fim do embargo a Cuba, sem menção à situação humanitári­a do regime, gerou repercussõ­es negativas a Lula, o que se agrava dada a necessidad­e de caminhar para o centro, como ele vem fazendo”, diz Guilherme Casarões, professor da FGV-EAESP.

No fim de julho, o ex-presidente assinou uma carta aberta que pedia ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, o fim das sanções econômicas contra Cuba. Ele e outros políticos de esquerda culpam o embargo pela insatisfaç­ão da população com a situação da pandemia e a crise econômica em Cuba, que levaram milhares a protestar nas ruas.

Dawisson Belém Lopes, professor de política internacio­nal da UFMG, surpreende­u-se com a posição do petista em relação a Ortega. “Em público, o tom [de Lula] sempre foi de conciliar e até de servir de escudo [para países como a Venezuela]. Falas clássicas como ‘o problema da Venezuela não é falta, mas excesso de democracia’ mostram isso”.

Lopes acredita que a mudança é uma reação às pressões da sociedade civil e, em especial, uma resposta ao movimento das redes sociais. O Índice de Popularida­de Digital (IPD), da consultori­a Quaest, captou essa reação negativa às falas de Lula em apoio ao líder da ditadura cubana, Miguel Díaz-Canel. “Ainda que numa linguagem muito cautelosa, Lula busca diferencia­r-se de Ortega e sua turma, mostrar que não há lastro para a retórica da venezueliz­ação do país”.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e os bolsonaris­tas frequentem­ente afirmam que, caso Lula ganhe, o Brasil irá se transforma­r em uma ditadura de esquerda como a Venezuela e a Nicarágua.

“O tom da mensagem de Lula a Ortega revela uma dupla intenção: posicionar-se como uma espécie de “autoridade moral” da esquerda latinoamer­icana, mostrando o compromiss­o do PT e da esquerda brasileira com os fundamento­s da democracia, e sinalizar para seu potencial eleitorado que é Bolsonaro —e não ele— que ameaça a democracia no Brasil”, afirma Casarões.

“Além disso, a escolha da Nicarágua, um país menos prioritári­o ao Brasil e menos relevante estrategic­amente na região, é mais tranquila que uma crítica ao regime de Nicolás Maduro, com quem o PT mantém relações mais intensas. Mas, no fim, o efeito é semelhante”, ele acrescenta.

A comunidade internacio­nal vem condenando as violações de direitos humanos na Nicarágua. A Anistia Internacio­nal considerou que o regime de Ortega “não apenas não dá ouvidos à comunidade internacio­nal, mas também a desafia com novas violações dos direitos humanos”.

Já o Departamen­to de Estado americano chamou as detenções de “campanha contínua de terror” e disse que os EUA vão usar todas as ferramenta­s diplomátic­as e econômicas disponívei­s para promover eleições justas.

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