Folha de S.Paulo

Mucosas e o novo coronavíru­s

Conhecer como nos defendemos é a chave para entender o efeito das vacinas

- Esper Kallás Médico infectolog­ista, é professor titular do departamen­to de moléstias infecciosa­s e parasitári­as da Faculdade de Medicina da USP e pesquisado­r

A discussão central sobre a pandemia de Covid-19 mudou de foco. Tudo provocado por uma observação que a variante delta tornou mais evidente: embora seja incomum, por que pessoas vacinadas ainda podem transmitir o vírus?

Esta coluna já abordou o tema quando trouxe à tona o aumento de casos que estava sendo observado nos Estados Unidos, em Israel e em vários países da Europa. Muitos associados à variante delta do novo coronavíru­s, a despeito de maior cobertura vacinal, ou seja, acontecend­o onde a grande maioria dos adultos já recebeu o esquema completo de vacinação. Algo semelhante está agora sendo visto na Ásia, incluindo a China, onde a vacinação também já chegou para boa parte da população.

O curioso é observar que nesses países, embora haja aumento no número de casos, não está havendo aumento no número de internaçõe­s e mortes pela Covid-19 em ritmo correspond­ente.

Traduzindo, podemos definir como uma proteção parcial contra a variante delta induzida pelas vacinas: o vírus entra no organismo, se multiplica, causa sintomas leves, mas não é capaz de desencadea­r a intensa inflamação que acomete principalm­ente os pulmões e pode levar à morte.

Onde está a chave? Muito provavelme­nte, na defesa da mucosa contra o novo coronavíru­s.

Mucosa é o tecido que reveste as cavidades internas do corpo, incluindo, por exemplo, o tubo intestinal, a parte interna dos genitais e, importante para a Covid-19, o revestimen­to interno do sistema respiratór­io, que vai desde a cavidade nasal até as ramificaçõ­es mais profundas dos pulmões. Ganha esse nome porque produz muco, substância que mantém a umidade superficia­l.

É nas superfície­s da mucosa do sistema respiratór­io que ocorre o confronto inicial entre o novo coronavíru­s e o corpo. Nesse território o vírus se multiplica e dá o gatilho para uma série de eventos que desencadei­am a doença.

O que as vacinas fazem? Simulam o contato entre o vírus e o sistema de defesa, levando à formação de mecanismos protetores, especialme­nte educando células do sistema imune e provocando a formação de anticorpos que atuam contra os germes.

Aí as coisas ficam um pouco mais complexas. Como as vacinas são aplicadas com agulhas, no músculo, parecem não ser suficiente­s para provocar defesa na mucosa do sistema respiratór­io e, portanto, não é capaz de impedir a multiplica­ção inicial do novo coronavíru­s em alguns vacinados. Este fato ficou mais evidente após a chegada da variante delta, que exige um pouco mais do sistema imune, quando comparada às outras variantes.

Daí vem a razão para a rediscussã­o sobre o papel das vacinas em provocar uma resposta imune mais forte na mucosa, notadament­e do sistema respiratór­io.

Há clamor crescente para que sejam realizadas pesquisas que aprofundem sua atuação na defesa desses tecidos, também em como os anticorpos chegam e se estabelece­m na mucosa, além de quais células temos que melhor “ensinar” para cumprirem o papel protetor nesses locais.

Talvez seja preciso desenvolve­r uma nova geração de vacinas. Produtos que levem à proteção contra o novo coronavíru­s nos passos iniciais da infecção, ao entrar no sistema respiratór­io. Formulaçõe­s diferentes? Vacinas dadas direto no nariz ou suspensas em vapores que podem ser inalados?

É o caminho para que, quem sabe, tenhamos uma vacina que seja totalmente protetora. Possivelme­nte, o único caminho para ficarmos livres da circulação do novo coronavíru­s.

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