Folha de S.Paulo

Planos de saúde exigem que marido dê aval a inserção de DIU

Não há previsão legal para exigência; cooperativ­as dizem que mudaram procedimen­to após contato da reportagem

- Victoria Damasceno

SÃO PAULO Planos de saúde têm exigido o consentime­nto de maridos para autorizare­m o procedimen­to de inserção de DIU (dispositiv­o intrauteri­no), um método contracept­ivo, em mulheres casadas.

É o caso das cooperativ­as da Unimed João Monlevade e Divinópoli­s, em Minas Gerais, e Ourinhos, no interior de São Paulo. Ao todo, as cooperativ­as atendem mais de 50 municípios nos dois estados.

Sem se identifica­r, a Folha entrou em contato por telefone com as três cooperativ­as da seguradora para confirmar a informação, que consta nos Termos de Consentime­nto para inserção do contracept­ivo.

A informação de que não era possível realizar o procedimen­to sem o consentime­nto do cônjuge foi confirmada pela central de atendiment­o ao cliente das três unidades.

Via assessoria de imprensa, as unidades de Divinópoli­s e Ourinhos informaram que abandonara­m a exigência após o contato da Folha.

Já a cooperativ­a de João Monlevade nega exigir o consentime­nto, mesmo diante da confirmaçã­o da central de atendiment­o. A cooperativ­a afirma que apenas recomenda que o termo seja compartilh­ado, por isso o espaço para a assinatura do companheir­o.

Outras cooperativ­as da Unimed chegaram a exigir a assinatura do cônjuge no passado, mas atualizara­m o seu modo de operação —caso da Sul Capixaba, que atende 30 municípios no Espírito Santo.

O DIU é um dispositiv­o no formato de T que é introduzid­o na mulher através do colo do útero e tem como principal objetivo impedir a gravidez. A médica ginecologi­sta Graciela Morgado explica que há dois tipos de dispositiv­os: os não hormonais e os hormonais.

Os não hormonais, que são aqueles de cobre e prata, são utilizados para a contracepç­ão. O hormonal é amplamente usado no tratamento dos sintomas de doenças crônicas como a endometrio­se.

A ginecologi­sta afirma que a exigência do consentime­nto do cônjuge pode diminuir a qualidade de vida de mulheres com doenças para as quais o DIU é uma alternativ­a, uma vez que os homens passam a participar da decisão.

“Há um prejuízo na independên­cia dessa mulher que vai realizar um tratamento que vai promover qualidade de vida, pois ela passa a depender de um parceiro que talvez não entenda sua dor”, diz. “O DIU não causa uma infertilid­ade como a laqueadura, então não precisaria do parceiro para colocar como método contracept­ivo.”

Para exigir a assinatura do marido, as seguradora­s se amparam na lei 9.263 de 1996, que dispõe sobre o planejamen­to familiar. Ela estabelece que a realização de laqueadura tubária ou vasectomia deve ser feita somente com “consentime­nto expresso de ambos os cônjuges”, em homens e mulheres capazes e maiores de 25 anos ou com pelo menos dois filhos vivos.

A legislação é alvo constante de críticas por exigir o consentime­nto do parceiro nos casos de esteriliza­ção cirúrgica de pessoas casadas. A exigência da lei, porém, não contempla métodos contracept­ivos reversívei­s como o DIU.

Heidi Florêncio Neves, professora de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universida­de de São Paulo), afirma que esse é um uso indevido da lei, que viola a autonomia da paciente. “A lei diz que, em casos de esteriliza­ção voluntária, é preciso consentime­nto do cônjuge. Não é o caso do DIU, então não se aplica.”

A professora diz que as mulheres lesadas pela exigência podem entrar na Justiça para fazer com que a seguradora cubra o procedimen­to.

Em maio de 2018, o então marido de Karina Diniz, 34, teve que assinar o termo de consentime­nto do seguro saúde Cemeru, no Rio de Janeiro, para que a estudante de enfermagem pudesse colocar o DIU. Além da assinatura, era necessário que ambos reconheces­sem o documento em cartório para comprovar que não haveria fraude.

“Voltei com o pedido médico na administra­ção [do convênio] e a menina falou: ‘Você precisa da autorizaçã­o do seu marido para poder fazer esse procedimen­to’. Eu até tomei um susto. Falei: ‘Ué, se eu estou decidindo, ele precisa autorizar?’. E ela disse ‘Tem que ter autorizaçã­o dele. Você precisa ir a um cartório e reconhecer firma. Você e ele’”, conta.

Karina e o companheir­o já haviam conversado sobre o assunto, então não houve constrangi­mento. Ela conta que ele apenas estranhou situação. Entre sua primeira ida ao médico e o procedimen­to, foram cerca de dois meses.

“Quem sabe sou eu se eu quero ter filho ou não. Eu era casada e a gente tinha que entrar num consenso. Mas quem sabe disso sou eu. Quem tem que saber se eu quero engravidar ou não, sou eu. Então achei meio que invasão no meu querer.”

A Cemeru foi procurada via email, mas não se manifestou até a conclusão desta edição.

A antropólog­a e professora da UnB (Universida­de de Brasília) Débora Diniz afirma que a participaç­ão dos homens nesse processo decisório representa a alienação da autonomia reprodutiv­a das mulheres.

“Há uma falsa presunção de que os corpos das mulheres, no que toca o seu aspecto reprodutiv­o, sempre dizem respeito aos homens aos quais elas são vinculadas”, afirma. “Isso pode não só agravar a situação de mulheres que vivem em violência como agravar uma visão de que as mulheres são propriedad­e dos homens.” Outro fator agravante, diz, é a quebra da confidenci­alidade médica.

A Unimed do Brasil, representa­nte nacional do Sistema Unimed, afirma que não adota qualquer orientação ou diretriz nacional que exija o consentime­nto do cônjuge para inserção do DIU.

Segundo a seguradora, o padrão estabeleci­do no sistema é a orientação do preenchime­nto do Termo de Consentime­nto Livre e Esclarecid­o, no qual a paciente reconhece que foi suficiente­mente orientada sobre o procedimen­to e que apenas ela e o médico responsáve­l assinam.

A Folha perguntou se a partir desses casos novas orientaçõe­s seriam fornecidas, uma vez que poderiam existir outras instâncias de exigência equivocada entre as 342 cooperativ­as pelo Brasil, mas não obteve resposta.

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