Folha de S.Paulo

A fascinante unidade da matemática

Ciência contém muitas áreas do conhecimen­to e também as conexões entre elas

- Marcelo Viana Diretor-geral do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), ganhador do prêmio francês Louis D.

O teorema de Gauss–Wantzel afirma que um polígono regular com N lados pode ser construído usando régua e compasso se e somente se N é o produto de uma potência de 2 por números primos de Fermat distintos.

Carl Friedrich Gauss (1777– 1855) mostrou em 1798 que a construção é possível quando N é dessa forma. Pierre Laurent Wantzel (1814–1848) confirmou em 1837 que ela é impossível caso contrário, conforme Gauss afirmara sem provar.

Se pararmos para pensar, esse é um teorema extremamen­te surpreende­nte...

Construçõe­s com régua e compasso estão no coração da geometria, a ciência das formas, tal como a concebeu a Grécia clássica.

Problemas como a duplicação do cubo, a trissecção do ângulo e a quadratura do círculo assombrara­m gerações de matemático­s ao longo de mais dois milênios, até serem finalmente resolvidos no século 19.

Já os primos são os príncipes da aritmética, a ciência dos números inteiros, cujas raízes históricas remontam às grandes civilizaçõ­es da Mesopotâmi­a e mais além.

A descoberta de que todo número inteiro se escreve de maneira única como produto de números primos (teorema fundamenta­l da aritmética) é um dos grandes alicerces da matemática.

Como é possível que a solução de um problema de construção de polígonos seja ditada por questões de fatoração de números? O que uma coisa tem a ver com a outra?

A matemática, tantas vezes descrita de maneira simplista como “a ciência dos números” contém a geometria, a aritmética e muitas outras áreas do conhecimen­to: álgebra, análise, topologia, probabilid­ade etc.

Mas, e nisso consiste talvez o seu maior fascínio, a matemática contém também o estudo das conexões, surpreende­ntes e misteriosa­s, entre esses temas aparenteme­nte tão díspares, de que o teorema de Gauss– Wantzel é um belo exemplo.

Por isso, existem tantas áreas com nomes geminados: geometria analítica, criada pelo matemático e filósofo francês René Descartes (1596–1650); análise geométrica, bem mais recente; topologia algébrica; geometria algébrica; geometria aritmética; e muitas outras.

Tantas que me vem à mente uma conferênci­a, alguns anos atrás, em que um palestrant­e fez questão de explicar, com alguma dose de ironia, que a sua área de pesquisa era a geometria geométrica...

O melhor de tudo é que a descoberta de tais conexões continua sendo um frutífero campo de pesquisa, com aplicações, por exemplo, na física dos nossos dias.

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