Folha de S.Paulo

A morte é quem manda nas narrativas de Juan Rulfo, que é reeditado no Brasil

Maior autor mexicano do século 20, autor de ‘Pedro Páramo’ decidiu que não queria mais escrever

- Alvaro Costa e Silva

Depois de publicar o romance “Pedro Páramo” em 1955, Juan Rulfo se silenciou. Bateu nele a síndrome de Bartleby, como a descreveu Enrique Vila-Matas, “pulsão negativa ou atração pelo nada” que leva os criadores de consciênci­a mais elevada a escrever apenas um ou dois livros, que bastam a eles.

Em 1953, Rulfo publicou “Chão em Chamas”, coletânea de contos que reaparece no Brasil em excelente tradução de Eric Nepomuceno para a José Olympio —havia uma edição anterior, “O Planalto em Chamas”, da Paz e Terra, traduzida por Eliane Zagury. No original otítulo é ainda mais poético e sonoro, “El Llano em Llamas”.

Houve um terceiro livro de ficção, “O Galo de Ouro”, escrito entre 1956 e 1958, mas só publicado em 1980. A novela foi transforma­da em argumento de filme pelo próprio autor. Ao todo uma obra com menos de 400 páginas, mas que rendeu milhares de estudos acadêmicos.

Diferente de Salinger e Rimbaud, depois da decisão de não mais publicar, Rulfo não se mudou para uma pequena cidade onde viveu recluso ou virou mercador de armas e escravos na Abissínia. Como Bartleby, o personagem de Herman Melville, seu destino foi a burocracia. Trabalhou em departamen­tos de imigração e institutos indigenist­as.

Considerad­o o maior escritor do México no século 20, aproveitou para viajar, representa­ndo o país em congressos e colóquios. Esteve quatro vezes no Brasil e nunca perdeu uma oportunida­de de elogiar Guimarães Rosa.

Numa dessas visitas, derrubaram café em seu terno branco na casa do escritor Antônio Torres. Continuou impecável e, como começasse a trovejar, mudou de assunto, passando a elogiar o som dos trovões no Rio de Janeiro, que, para ele, lembravam os de Jalisco, a província onde nasceu e que retratou nos livros.

Enfrentou em todos os lugares do mundo a maldição de uma única e permanente pergunta. Por que parara de escrever? Inventou duas ótimas respostas. “Eu tinha o voo, mas cortaram minhas asas”, dizia. Ou comentava que um tio dele, chamado Celerino, havia morrido, e era este quem contava as histórias a ele.

Na verdade, Rulfo adotou um estranho silêncio, um silêncio com murmúrios e sussurros —não por acaso em sua primeira versão “Pedro Páramo” se intitulava “Los Murmullos”.

Ao longo dos anos o autor alterou o texto, retocou palavras, suprimiu descrições, incluiu expressões populares, trocou a narração do modo direto para o indireto, mudou a ordem dos contos de “Chão em Chamas”. Um dos relatos, “E nos Deram a Terra”, teve, entre a primeira aparição numa revista e uma das muitas edições “revistas e corrigidas”, nada menos que 50 modificaçõ­es.

O trabalho de lapidação e polimento atingiu sua assinatura, reduzida do nome completo Carlos Juan Nepomuceno Pérez Rulfo Vizcaíno. Não faltou o toque criativo. “Rulfo” não constava do batismo original, foi incluído depois em homenagem ao avô paterno.

Sua obsessão pelo corte também era estrutural. “Pedro Páramo” apresenta uma montagem cubista, uma composição desordenad­a e elíptica, se movendo por diferentes tempos e planos narrativos. Isso desconcert­ou os primeiros leitores e críticos, acostumado­s aos livros “bem feitos”. Aos poucos o romance se impôs pela sua beleza e violência.

Em essência é uma tragédia relembrada por fantasmas. “Em suas páginas se rompem todas as fronteiras entre vivos e mortos”, define o tradutor Eric Nepomuceno.

O mesmo labor inconformi­sta está presente em “Chão em Chamas”. Similares às de “Pedro Páramo”, são histórias de espectros, de amor, de vingança, de injustiças, de conflitos de terra, de dementes, de alguma sorte e muito azar.

Alguns relatos se aproximam da perfeição —“Macário”, “Digam que Não me Matem!”, “Luvina”. Um personagem deste conto, antes de Millôr Fernandes e Renato Russo, pergunta “que país é este?”.

A época é imprecisa e reflete uma realidade latino-americana cíclica, os lugarejos dominados pela falsidade dos caciques políticos e pelos grupos paramilita­res. “Sempre achei que fizeram bem de tirar nossas carabinas. Por aqui é perigoso andar armado. Matam a gente sem avisar, só de ver a toda hora alguém com ‘a 30’ amarrada nas correias.”

Como no Brasil de hoje, no romance e nos contos de Juan Rulfo, a morte manda.

Chão em Chamas

Autor: Juan Rulfo. Trad.: Eric Nepomuceno. Ed.: José Olympio. R$ 49,90 (208 págs.)

Pedro Páramo

Autor: Juan Rulfo. Trad.: Eric Nepomuceno. Ed.: José Olympio. R$ 44,90 (176 págs.)

 ??  ?? Autorretra­to de Juan Rulfo nos anos 1940, à esq., e outras fotografia­s tiradas pelo escritor no interior do México e presentes no livro ‘100 Fotografia­s’
Autorretra­to de Juan Rulfo nos anos 1940, à esq., e outras fotografia­s tiradas pelo escritor no interior do México e presentes no livro ‘100 Fotografia­s’
 ?? Juan Rulfo/ Museo Amparo/Editorial RM e Divulgação ??
Juan Rulfo/ Museo Amparo/Editorial RM e Divulgação
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil