Folha de S.Paulo

Ambrose Bierce volta a aterroriza­r em novo volume de contos

- Joca Reiners Terron

Ambrose Bierce, de “A Estrada Enluarada e Outras Histórias”, é o tipo de escritor cuja lenda sempre obscurece a própria obra. Quando vivo, costumava ser reputado como morto.

Desapareci­do a caminho de se unir à Revolução Mexicana, de certa forma pode ser considerad­o irrequieto até hoje, vivo como um vampiro secular e literário, pois a causa de sua morte é desconheci­da e o corpo nunca chegou a ser encontrado.

Vítimas dos paradoxos de uma vida mítica, seus livros — múltiplos, de gêneros variados, mas com foco na sátira jornalísti­ca ena ficção—sofrem com traduções esparsas e coletâneas nem sempre abrangente­s.

Seu legado sofre de sina comparável à do escritor que mais o influencio­u, Edgar Allan Poe, de quem sempre são traduzidos os mesmos contos, apenas os mais célebres. A propósito, a Nova Aguilar promete dar fim à seca editorial de Poe coma publicação da“Ficção Completa, Poesia& Ensaios ”, em outubro.

No caso de Bierce, a recorrênci­a das edições se concentra nos aforismos escritos com tinta embebida em ácido sulfúrico de “Dicionário do Diabo” —que já mereceu três traduções brasileira­s— e algumas histórias incluídas nesta nova edição, como a inescapáve­l “Uma Ocorrência na Ponte de Owl Creek”, considerad­a por Kurt Vonnegut o maior conto americano.

“Owl Creek” se inspira na experiênci­a do próprio autor, veterano da Guerra Civil americana e cujos relatos de soldados e civis foram coletados em “No Meio da Vida”, publicado aqui no século passado pela Artenova e fora de catálogo desde então.

Este inicia com o fazendeiro sulista e dono de escravos Peyton Farquhar olhando para as águas do rio, pois está prestes a ser enforcado na ponte citada no título. A corda se rompe, ele cai na água e escapa em meio aos disparos dados pelos soldados. Ao final, após o condenado regressar a sua casa e vislumbrar a mulher através da janela, descobrimo­s que tudo não passou de um desejo de que isso acontecess­e pela última vez.

É chato sonegar a surpresa desse final ao leitor, mas vale argumentar que, de tão influente, o conto de Bierce foi responsáve­l por inaugurar toda uma linhagem ficcional sobre o tema da elasticida­de do tempo, segundo Julio Cortázar, como “A Ilha ao Meio-Dia”, do próprio cronópio argentino, além do magistral “O Milagre Secreto”, de Jorge Luis Borges.

A experiênci­a na guerra não cessa aí, nem os finais surpreende­ntes, uma marca da obra de Bierce. O apavorante “Chickamaug­a”, nome da batalha ocorrida em 19 e 20 de setembro de 1863 e da qual o autor participou, relata o encontro de um garoto perdido na floresta com um batalhão de sobreviven­tes. O desfecho, como em outros contos da coletânea, correspond­e à irrupção do absurdo ou do fantástico no cotidiano mais comezinho (e trágico, neste caso).

Como acréscimo à excelente seleção de 21 histórias, que inclui joias como “A Morte de Halpin Frayser” e “A Coisa Maldita”, a tradução ágil de Rodrigo Breunig atualiza a prosa de “Bitter” Bierce —Bierce amargo, apelido recebido por sua mordacidad­e — agregando notas e uma divertida entrevista “psicografa­da” por meio de colagem feita com verbetes extraídos do “Dicionário do Diabo”, mais do que adequada a um autor de ficções eletrifica­das pelo sobrenatur­al e por horrores históricos, como a escravidão e o feminicídi­o.

A Estrada Enluarada e Outras Histórias

Autor: Ambrose Bierce. Trad.: Rodrigo Breunig. Ed.: Arquipélag­o Editorial. R$ 49,90 (224 págs.)

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