Folha de S.Paulo

Peça faz espectador caminhar com temor pelas ruas lotadas do Brás na pandemia

- Nelson de Sá

Brás: Memórias e (Des)Memórias de uma São Paulo Precária *****

Dir.: Beatriz Cruz. Companhia O Grito.

Dando sequência ao lento e intermiten­te retorno do teatro presencial em São Paulo, “Brás: Memórias e (Des) Memórias de Uma São Paulo Precária” é uma caminhada pelas ruas assustador­amente lotadas do bairro paulistano, em plena tarde comercial.

Foi no último dia 21, na segunda das duas únicas apresentaç­ões ou “intervençõ­es”. Muita gente sem máscara, nas calçadas, o que fez pensar sem parar na variante delta.

O grupo de espectador­es se reuniu na Casa Restaura-me, uma antiga fábrica colada à linha do trem, gerida por uma organizaçã­o católica para atender pessoas em situação de rua, na qual a Cia O Grito tem sua sede. Na parede da entrada, uma foto do papa João Paulo 2º, que foi ator e dramaturgo.

Mesclando espectador­es e atores —que conduzem o grupo, sem propriamen­te representa­r— a caminhada avança pela rua Barão de Ladário e outras, começando por um shopping popular, de pequenas lojas de confecção. Manequins, que remetem ao comércio predominan­te do bairro, são a primeira e depois outras paradas do trajeto. Eles são a imagem de referência abraçada pelo projeto.

“Brás: Memórias e (Des)Memórias” lembra, inclusive pelo shopping como primeira “estação”, aquilo a que se assistiu em “Bom Retiro 958 Metros” há uma década, no bairro próximo. Mas agora é a população o espetáculo, até por acontecer de dia, mais do que as construçõe­s históricas, o cenário iluminado do Bom Retiro.

Muito se passa no áudio, que o público baixa no celular, para ouvir ao longo de cerca de uma hora. É ele que orienta diante de qual loja parar ou qual viela explorar. “Descobri o Brás em 1933, o bairro era grande, e eu, pequeno”, começa a contar uma voz de morador, com sotaque italiano. “Mas, se a gente vai começar por aí, fingindo que o Brás era o melhor lugar do mundo, é melhor largar mão.”

O bairro que surge então, seguindo uma cabeça de manequim, é um aglomerado ainda mais diverso de estrangeir­os e línguas. Africanos como vendedores ambulantes, chineses nas portas de restaurant­es, sem falar português, muçulmanas, xiitas e sunitas, de hijab, com crianças. Muitos coreanos e alguns bolivianos, como antes.

No meio do caminho, o grupo para diante de uma loja com uma série de manequins, de diversas cores, dispostos em arquibanca­da. O espectador é instruído a se identifica­r com um deles e, em seguida, a propor uma nova postura para ele, um novo gesto, com seu próprio corpo.

Já perto do fim da caminhada, um dos narradores pergunta se alguma coisa mudou. Do Brás ao Pari, em comparação ao que se via antes da pandemia, cresceu a miséria.

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Wilson Saraiva/Divulgação Apresentaç­ão da peça ‘Brás: Memórias e (Des)Memórias’

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