Folha de S.Paulo

Alison do Santos leva o bronze em prova na qual o 5º lugar seria ouro nos Jogos do Rio-2016

‘O Menino que Virou Deus’, do rapper Kyan, embala conquista do brasileiro de São Joaquim da Barra

- Alex Sabino

tóquio Não é que Alison dos Santos ficou ansioso antes de ganhar o bronze na final dos 400 m com barreiras. Ele teve medo de sentir medo. Decidiu relaxar. Ou, como ele mesmo definiu, “xavecar o momento”.

Colocou os fones de ouvido para escutar “O Menino que Virou Deus”, do rapper Kyan. Era a mesma música que sua família cantava antes da prova, em São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, a 18 mil quilômetro­s de distância de Tóquio. O corredor brasileiro não se surpreende­u quando lhe contaram isso. “Quem me conhece sabe”, definiu, sobre seus gostos musicais.

Descontraí­do e brincalhão após o maior momento da sua vida, ele disse que ao sair de casa no início do ano para treinar nos Estados Unidos foi para fazer história. Trajetória que achou semelhante à da música que escutou antes de pisar na pista do Estádio Olímpico de Tóquio.

“Trouxe comida para dentro de casa, esperança para dentro de casa. Quem só sentia a dor e a revolta trouxe a melhora para dentro de casa”, diz a letra de Kyan. A história foi feita. Não apenas porque ao chegar em terceiro lugar, Alison dos Santos, 21, ganhou a primeira medalha do atletismo brasileiro em Tóquio. Nem por ser o primeiro pódio em uma prova individual de velocidade de um atleta do país na modalidade desde que Robson Caetano foi bronze em Seul-1988.

Entre os Jogos na Coreia do Sul até a madrugada desta terça (3), o atletismo nacional havia obtido medalhas com revezament­os, saltos ou maratona. A final dos 400 m com barreiras em Tóquio ficará marcada como uma das corridas mais fortes da história do atletismo. O quinto colocado, Abderrahma­n Samba, do Qatar, fez um tempo (47s12) que lhe daria o ouro na Rio-2016.

Karsten Warholm, da Noruega, bateu o recorde mundial, que era dele mesmo, com 45s94. Baixou o tempo em 0,76 décimos de segundo. O 2º colocado, o americano Rai Benjamin, também superou aquele que, até esta segunda (2), era o melhor tempo da história. Alison fechou o pódio em terceiro com 46s72, sua melhor marca e recorde sul-americano.

“Foi uma prova louca, muito forte. Foi algo incrível. Mas serviu para mostrar que eles também são de carne e osso. Eles sangram como a gente”, disse.

Ele quis dizer que é capaz de diminuir cada vez mais a diferença para Benjamin, 24, e, principalm­ente, Warholm, 25. Alison terá pelo menos mais dois ciclos em boas condições de disputa. Em Los Angeles-2028, estará com 28 anos. O brasileiro tem um diferencia­l que, no futuro, pode se tornar ainda mais prepondera­nte. Ele nasceu para correr. Da sua altura de 1,98 m, tem 1,12 m de pernas. As passadas largas e coordenada­s passam a impressão que não se esforça.

A música que escutou e o relaxament­o fizeram com que voltasse a ser o Alison de sempre. Ensaiou um passo de dança ao ser anunciado pelo sistema de som do estádio. Sorriu boa parte do tempo. Nos quase 47 segundos de prova, teve o controle da situação para ir ao pódio. Apenas não conseguiu se aproximar do norueguês, que fez uma das corridas mais memoráveis da história dos Jogos.

Foi com a medalha conquistad­a que a realidade bateu. Ele cumpriment­ou os outros dois medalhista­s, abraçou Samba e se ajoelhou. Fez uma oração, benzeu-se duas vezes e procurou onde poderia encontrar uma bandeira verde e amarela.

“Eu te falei. Não te falei?”, disse ele ao abraçar o assessor do COB (Comitê Olímpico do Brasil). Riu das perguntas dos jornalista­s e fez o que se propôs a fazer. Divertiu-se. Continuava a xavecar o momento.

É mais do que Alison poderia imaginar. Hoje ele percebe o que o atletismo fez por ele. O esporte lhe deu confiança e a certeza de que era igual a todos os outros. Para quem assistiu às provas pela TV, a imagem do atleta com falhas no cabelo e manchas na cabeça se tornou normal.

Com 10 meses de vida, o óleo quente que estava em uma frigideira caiu sobre a cabeça dele. Com queimadura­s de terceiro grau também nos ombros e no peito, passou cinco meses internado no Hospital de Barretos. Quando andava na rua durante a juventude, sentia os olhares e percebia os comentário­s sobre sua aparência.

“O atletismo me fez ser diferente. Eu melhorei, passei a me aceitar mais. Não tinha motivos para ter vergonha. Todos somos iguais. São batalhas que eu venci. São marcas”, diz.

Em seguida, ele cita frase quase idêntica à canção que escutou antes de completar a história a que se propôs. “Eu saí de casa e só vou voltar quando cumprir a missão que me foi dada.” A recompensa não será só a medalha. Não vê a hora de, quando voltar a São Joaquim da Barra, tomar tubaína.

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Aleksandra Szmigiel/Reuters Alison foi o 1º atleta brasileiro a prestar continênci­a no pódio em Tóquio

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