Folha de S.Paulo

Divisão do ouro mostra que não é preciso ver adversário sangrar

- Katia Rubio

Pergunta Eduardo Galeano: para que serve a utopia? E a resposta certeira é para que eu não deixe de caminhar. Porque a utopia está no horizonte e sempre que me aproximo ela se afasta. E por mais que eu caminhe em sua direção ela jamais será alcançada.

O olimpismo nasceu para ser uma utopia. Prega o esporte como valor, como promoção da paz e acima de tudo como forma de promover a humanidade. Por isso é uma utopia.

Embora tenha se inspirado nas práticas atléticas das celebraçõe­s da Antiguidad­e, desenvolve­u-se dentro da sociedade moderna pósindustr­ial pautada pelo liberalism­o. E foi nessa esteira que alguns valores de humanidade se perderam para focar apenas o rendimento.

Em Tóquio 2020 parecia que o Movimento Olímpico veria uma vira dado resultado a qualquer custo, depois de o mundo ser revirado pela Covid-19. Da incerteza da realização até a competição com restrição, tudo levava a crer que essa edição olímpica marcaria a história.

Os atletas chegaram ao Japão muito mais sensíveis. Tiveram tempo para parar e pensar em suas vidas, em seu futuro. Isso costuma acontecer quando a própria existência pessoal ou esportiva corre riscos. Somente quem esteve bem próximo do fim é capaz de ressignifi­car tudo aquilo que envolve avida.

Durante anos tive que enfrentar colegas que buscam reduzir o esporte à competição. Quem trabalha com educação ou no cotidiano de atletas como os que estão competindo nesses últimos dias sabe que oque leva esses seres humanos achegarem aonde estão éaforçasim­bó lica que cerca essa competição em especial.

Ali estão os melhores, não resta a menor dúvida. O que se espera deles? Que deem o melhor de si. Nenhum idiota da objetivida­de duvida disso. Diferentem­ente do que pensam alguns, atletas não são máquinas de produzir resultados. Eles são o espelho da pluralidad­e do mundo em que vivem.

Quando Mutaz Essa Barshim, do Qatar, e Gianmarco Tamberi,d aI tália, foram para aprovados alto em altura, a mesma que deu um quarto lugar para uma Aída dos Santos solitária em 1964, estavam dispostos adar o melhor para subira o pódio. Não combinaram nada de antemão. Não praticaram o cada vez mais comum “match fixing”. Foram praticar aquilo que marca a vida de um atleta: a busca da excelência.

Importante dizer que a excelência é uma marca individual que pode ser praticada coletivame­nte. Aliás, se essa virtude fosse melhor compreendi­da, talvez vivêssemos num mundo muito melhor. Seria a competição consigo e não contra o outro. Seria a expressão da areté.

Barshim e Tamberi são adversário­s de longa data. No melhor estilo de fair play disputam e vibram não apenas por suas marcas, mas pela marca de todos aqueles que rivalizam com o melhor que podem desempenha­r. Saltaram até os seus limites, esgotando suas capacidade­s.

Diferentem­ente do que pensam alguns, atletas não são máquinas de produzir resultados. Eles são o espelho da pluralidad­e do mundo em que vivem

Se o empate faz parte do jogo, ali era o momento de afirmá-lo. E assim foi feito. Não pelo prazer egoísta de terem a medalha, que já lhes pertencia. Mas para mostrar ao mundo que não é preciso ver sangrar seu adversário como em alguns reality shows que não admitem mais do que um vencedor.

Os Jogos Olímpicos imortaliza­m atletas por seus feitos. E essa edição, em especial, está imortaliza­ndo justamente os seres humanos campeões em humanidade. Que se mostraram falíveis e frágeis, que puseram de lado a rivalidade neoliberal que nunca passou perto do espírito olímpico. Não haveria momento melhor para afirmar a amizade e o respeito como valores universais.

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