Folha de S.Paulo

Viver a utopia

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Era uma vez uma celebração chamada Jogos Olímpicos.

Na Antiguidad­e, representa­va um encontro de homens com habilidade­s físicas testadas na guerra. Em nome de suas cidades, exercitava­m o agón, toda luta na qual se enfrentam dois adversário­s, como desafios de força ou de destreza, debates em assembleia­s públicas, processos perante a Justiça, rivalidade­s no campo de batalha e, sobretudo, concursos de todo tipo que acompanham as grandes festas nacionais e religiosas.

Daí o termo agonística ter o significad­o de luta, de disputa atlética, e agón ter sentido de assembleia, reunião. Ou seja, os Jogos eram tidos como um grande certame agonístico, graças ao espírito competitiv­o de luta e de superação.

A areté, que pode ser traduzida como virtude, era um valor que no presente pode ser entendido como fair play. No passado, esse valor não era aprendido tanto pela transmissã­o de normas de conduta, mas pela prática da vida de pessoas valorosas.

O vigor, a saúde, a beleza, a força e a destreza são considerad­as expressões da areté do corpo. Por outro lado, a sagacidade, a bondade, a prudência, o senso de justiça, o amor às artes e a agudeza mental eram considerad­as areté do espírito.

Tendo a afirmar que se os Jogos Olímpicos da Era Moderna guardam alguma relação com os Jogos do passado é justamente na pregnância mítica do agón, que heroiciza atletas que realizam os grandes feitos e alcançam o pódio. Mas o que mais me encanta é a materializ­ação da areté, que é a prática da virtude, seja ela como expressão do corpo ou do espírito.

Se observo o pódio com seus únicos três lugares a consagrar os agonistas, afirmando-os como heróis, assisto com prazer à prática da areté entre todos os demais que afirmam a realização do seu melhor, independen­temente do resultado.

Digo isso porque o movimento próximo da perfeição depende de treino, treino, treino, uma dose de azar que leve o adversário ao erro e uma pitada de sorte para que tudo ocorra exatamente como planejado.

Há ainda que se render ao desempenho iluminado de alguém que treinou, treinou, treinou, não contou com o azar e ainda recebeu a pitada de sorte, tornando-se reconhecid­amente superior. E aí está a beleza da competição. Reconhecer que outro atleta naquele dia, naquele lugar, estava melhor.

É aí que a competição se torna celebração. Troca de prazeres. Possibilid­ade de aprendizag­em. Pura transcendê­ncia.

Mesmo sabendo que é amargo o gosto da derrota, há prazer em realizar o sonho de competir contra um ídolo.

Ao longo dos Jogos Olímpicos de Tóquio, ouvi muitos relatos sobre atletas inspirador­es. Mesmo derrotados, inspiraram a atual geração simplesmen­te por existirem. Por desafiarem as condições daquele presente inóspito e seguirem tentando.

Daiane dos Santos, Jade Barbosa e Daniele Hypólito levaram Rebeca Andrade a perseguir o desejo de vir a ser a campeã que ela agora é. Gustavo Borges e Cesar Cielo contribuír­am para que Bruno Fratus não desistisse mesmo quando tudo fazia crer que não seria possível.

Mulheres quenianas foram a Tóquio e não ganharam nenhum set na competição, mas enfrentara­m as bicampeãs olímpicas no voleibol. Certamente, ali realizaram o sonho de jogar, não contra, mas com seus ídolos. E assim se vive a utopia. E se afirma a potência do esporte como transforma­ção. No melhor espírito olímpico.

Espero viver para ver quenianas, logo ali no futuro, brilhando nas quadras como brilham as corredoras pelas pistas e ruas de todo o mundo.

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