Folha de S.Paulo

A trapaça é um esporte nacional

O que se sabe e o que falta saber sobre o brasileirí­ssimo ‘picareta’

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Que a picaretage­m é um esporte nacional valorizado, talvez mais que o futebol, basta olhar em volta para comprovar. Das pessoas em posição de poder que você avista de onde está, quantas são rematados picaretas, do cabo de madeira às duas pontas de ferro? No entanto, há um ponto cego na história dessa palavra.

Não falo da picareta-instrument­o, substantiv­o feminino da língua portuguesa, mas do substantiv­o de dois gêneros, brasileiri­smo que significa “pessoa aproveitad­ora, que utiliza meios condenávei­s para obter o que deseja” (Houaiss). Definição insuficien­te, aliás.

Prefiro a longa formulação do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (o que é curioso, tratando-se de palavra brasileira): “Pessoa que engana os outros, que se faz passar por aquilo que não é, que finge que sabe de um assunto quando na realidade não o domina; pessoa que procura tirar vantagens, usando meios pouco lícitos”.

Agora sim —cabe inteiro aí o picareta, praga de ambientes variados, mas especialme­nte à vontade na esfera oficial de um “Brasil imbecil e burocrátic­o”. As palavras entre aspas são do escritor Lima Barreto (1881-1922), que criou um dos maiores picaretas da nossa literatura no conto “O Homem que Sabia Javanês”.

Cheio de dívidas, um sujeito chamado Castelo resolve tomar dinheiro de um barão meio caduco fingindo ser mestre na língua malaio-polinésia da ilha de Java, da qual nada sabe.

É tão grande a vulnerabil­idade nacional ao picareta que Castelo acaba encastelad­o na posição de medalhão da República, glória cívica, com direito a belo emprego público e convite para almoçar com o presidente. Soa familiar?

A importânci­a da picaretage­m em nosso meio torna mais estranha a lacuna acerca da palavra nos estudos etimológic­os. Ninguém sabe ao certo como da picareta se fez o picareta, quer dizer, como do sentido de instrument­o brotou o de pilantra.

Conheço só um estudioso que tenta dar conta disso, e não me parece uma tentativa muito boa. Silveira Bueno (1898-1989) acredita tratar-se de metáfora simples, baseada na ideia de que o picareta “em tudo mete a cara para cavar dinheiro, emprego”. Seria, assim, um sinônimo de cavador, que tem entre suas acepções a de trambiquei­ro.

Que a picareta acabou tendo emprego metafórico parece certo, mas acho estranho que não se considere a provável influência de um termo que, hoje de uso raro, já circulou com sentido muito parecido: pícaro.

Palavra nascida no espanhol, a princípio pícaro queria dizer “sujeito ruim e de má vida”. Acabou por nomear um tipo de pessoa ardilosa que, pobre e sem recursos, usa de esperteza para tirar sua sobrevivên­cia da burla, do golpe, da perna passada em gente de posição social superior.

O pícaro desembarco­u no português no início do século 17 e, como na língua de origem, provou-se influente a ponto de nomear um gênero literário de sucesso —o picaresco, centrado nas aventuras cômicas dos pícaros.

A semelhança sonora entre o pícaro e a picareta pode não ser coincidênc­ia. O catalão Joan Corominas (1905-1997) considera provável que o nome do trapaceiro, como o do instrument­o, venha do verbo “picar” —ação executada por gente de sua classe, como auxiliares de cozinha.

Coincidênc­ia ou mais do que isso no caso do instrument­o, o fato é que as correspond­ências de forma e sentido entre o pícaro e o picareta tornam essa associação, no mínimo, uma hipótese de peso para a origem do brasileiri­smo.

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