Folha de S.Paulo

Judô político

Israel desrespeit­a direitos humanos de palestinos, diz atleta suspenso por 10 anos

- Adalberto Leister Filho

O judoca Fethi Nourine, 30, afirma que não se arrepende de ter se recusado a lutar nas Olimpíadas de Tóquio após descobrir que poderia enfrentar um rival de Israel, o lutador Tohar Butbul. Em entrevista à Folha, o argelino disse que faria tudo de novo.

“Não, nunca me arrependi e não irei me arrepender. Continuare­i a falar sobre o sionismo, a cumplicida­de, a hipocrisia das organizaçõ­es internacio­nais e as mentiras sobre nosso povo [muçulmanos]”, declarou Nourine.

“Organizaçõ­es internacio­nais clamam pela liberdade individual. Foi o que fiz: retireime [das Olimpíadas] e boicotei o confronto com o atleta da entidade sionista. Ia contra minha vontade pessoal. Portanto, não cometi crime”, defende.

O argelino afirma que seguiu os princípios da Carta Olímpica ao protestar pelos direitos do povo palestino.

“Organizaçõ­es internacio­nais e os valores olímpicos clamam pelo islã e pela liberdade. Israel vai contra todos os princípios dessas organizaçõ­es. Eles ocuparam uma terra, estabelece­ram um Estado em um local que já tinha seu próprio povo e desrespeit­am todos os direitos humanos”, criticou o judoca.

Nourine se refere ao artigo 6 da Carta Olímpica, que estabelece que os direitos e a liberdade “devem ser assegurado­s sem discrimina­ção de qualquer tipo, como raça, cor, sexo, orientação sexual, idioma, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, propriedad­e, nascimento ou outro status”.

No entanto, a recusa do judoca em lutar fez o COI (Comitê Olímpico Internacio­nal) responder à época que havia sido uma violação ao documento.

Por abandonar a competição, ato que também foi acompanhad­o pelo técnico Amar Benikhle, o lutador teve inicialmen­te a credencial cassada e foi mandado de volta à Argélia. A FIJ (Federação Internacio­nal de Judô) já os havia suspendido preventiva­mente.

Reunida, a Comissão Disciplina­r da FIJ decidiu punir Nourine e Benikhle com uma pena dura, raramente vista no esporte: dez anos de suspensão de todas as competiçõe­s e atividades promovidas pela entidade.

Em Olimpíadas, punições duras por causa de manifestaç­ões políticas foram mais comuns em épocas passadas.

Nos Jogos da Cidade do México, em 1968, os americanos Tommy Smith e John Carlos, ouro e bronze nos 200 m, respectiva­mente, levantaram os punhos fechados, com luvas negras, durante a cerimônia do pódio. O gesto, referência ao movimento Panteras Negras, foi um protesto contra o racismo nos Estados Unidos.

Pelo ato, foram excluídos da competição e suspensos pelo COI, mas mantiveram suas medalhas. Smith e Carlos abandonara­m o atletismo no ano seguinte.

Em Seul-1988, houve o maior escândalo de doping da história olímpica. Ben Johnson havia vencido a final dos 100 m, ao bater o rival Carl Lewis e conquistar o novo recorde mundial. Dois dias depois, porém, o exame antidoping do canadense acusou a presença do esteróide anabólico estanozolo­l. O velocista teve destituída a medalha e foi suspenso por dois anos.

Outro caso famoso, este de rebelião, aconteceu em Pequim-2008. Ara Abrahamian jogou a medalha de bronze no chão após a cerimônia de pódio da luta greco-romana (categoria até 84 kg).

O lutador, nascido na Armênia e naturaliza­do sueco, estava irritado pela eliminação na semifinal, em decisão dos árbitros. Acabou suspenso, mas autorizado pela Fila (Federação Internacio­nal de Lutas Associadas) a voltar a competir no ano seguinte.

Todos os casos tiveram punições bem mais brandas do que a dada a Nourine.A federação de judô justificou a medida dizendo que “é evidente que os dois argelinos, com más intenções, usaram os Jogos Olímpicos como plataforma de protesto e promoção de propaganda política e religiosa, o que é uma violação clara e grave dos estatutos e ao Código de Ética da FIJ e à Carta Olímpica”.

Os dirigentes da FIJ também invocaram o famoso artigo 50 da Carta Olímpica, que proíbe qualquer “tipo de manifestaç­ão ou propaganda política, religiosa ou racial”, sendo vetada essa iniciativa “em quaisquer locais, instalaçõe­s ou outras áreas olímpicas”. Nourine considera a punição injusta.

“Foi um castigo cruel e esperado. Essa é a prova da cumplicida­de e apoio da Federação Internacio­nal [de Judô] com a entidade terrorista sionista, que a cada dia mata, prende e sitia palestinos inocentes”, disse o judoca.

“Com base em que [critérios] estou sendo punido por tanto tempo?”, questionou.

De fato, nas Olimpíadas, o COI adotou tom de flexibilid­ade em relação ao tema. Atletas que fizeram manifestaç­ão política no pódio, por exemplo, levaram apenas advertênci­as, mas não houve punição.

No arremesso do peso, a americana Raven Saunders, 25, que ficou com a medalha de prata, ergueu os braços e os cruzou, em forma de X. Na entrevista após a conquista, disse que o gesto significav­a “o cruzamento onde todas as pessoas oprimidas se encontram”. O COI finalizou o assunto após Saunders perder a mãe, Clarissa, dias após a conquista da medalha olímpica.

Já as chinesas Bao Shanju e Zhong Tianshi, campeãs olímpicas da prova de velocidade por equipes do ciclismo pista, usaram broches do ditador Mao Tsé-tung, que governou a China de 1949 a 1976.

O Comitê Olímpico Chinês informou ao COI que as ciclistas foram avisadas de que não poderiam usar tais emblemas em cerimônia de pódio e prometeu que isso não aconteceri­a novamente. O comitê internacio­nal encerrou o caso.

A suspensão dada a Nourine, na prática, encerra a carreira do judoca. Ele só poderia voltar a competir aos 40 anos, quando a maioria dos atletas de alto rendimento já se aposentou.

Cabe ainda recurso ao TAS (Tribunal Arbitral do Esporte), em Lausanne, na Suíça, última instância de julgamento no esporte. O argelino diz que irá lutar por seus direitos até o final.

“Sim, vou apelar. Se eles insistem em punir, vou insistir em expô-los também. Mostrarei isso nos próximos dias”, respondeu Nourine, que é bastante ativo nas redes sociais na defesa da causa palestina.

Na última terça (14), ele postou no Instagram a imagem de Muhammad Arda, 39. O palestino foi recapturad­o pela polícia israelense após escapar da prisão de segurança máxima de Jalboua, no norte da Cisjordâni­a no último dia 6.

Arda, preso desde 2002, foi condenado à prisão perpétua por participar de operações militares contra Israel. Ele é acusado de pertencer às Brigadas Al-Quds, grupo armada que tem Israel como inimigo e defende um Estado palestino.

“Oh, organizaçõ­es internacio­nais: onde estão os direitos humanos que vocês defendem enquanto vemos o efeito da tortura nos rostos dos prisioneir­os? Ou é culpa deles serem muçulmanos?”, escreveu Nourine.

É um ativismo que ele não pretende abandonar. Ele afirma que continuará usando as redes sociais e outros meios para defender os valores que acredita. “A causa Palestina é uma causa justa. E uma pessoa sensata e justa não se afasta dela. Sou muçulmano e é meu dever apoiar meus irmãos muçulmanos. E isso é uma crença na minha religião”, finaliza.

Foi um castigo cruel e esperado. Essa é a prova da cumplicida­de e apoio da Federação Internacio­nal [de Judô] com a entidade terrorista sionista, que a cada dia mata, prende e sitia palestinos inocentes. Com base em que [critérios] estou sendo punido por tanto tempo?

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Instagram O judoca Fethi Nourine, 30, foi suspenso por 10 anos pela federação de judô

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