Folha de S.Paulo

Bolsonaro pressionou para barrar vacina em adolescent­es

Presidente se baseou em relatos de supostas reações; medida feita às pressas surpreende o setor

- Mateus Vargas e Raquel Lopes

Jair Bolsonaro e apoiadores pressionar­am Marcelo Queiroga (Saúde) a rever regras para vacinação de adolescent­es. Feita às pressas, a decisão de orientar que menores de 18 não sejam imunizados surpreende­u integrante­s do SUS e da Anvisa.

O ministro atribuiu o recuo a dúvidas sobre segurança e eficácia nesse grupo.

Conselhos de secretário­s de saúde de estados e municípios, assim como Anvisa, não recomendar­am suspender aplicação nesses jovens sem comorbidad­es.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e seus apoiadores pressionar­am o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a rever regras para vacinação contra a Covid-19 de adolescent­es.

Feita às pressas e sem conhecimen­to dos técnicos do PNI (Programa Nacional de Imunizaçõe­s), a decisão de orientar que jovens menores de 18 anos não sejam imunizados pegou de surpresa gestores do SUS, diretores da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e até secretário­s de Queiroga.

O ministro atribuiu o recuo a dúvidas sobre a segurança e eficácia da aplicação dos imunizante­s em adolescent­es.

Agora a Saúde orienta uso apenas da vacina da Pfizer e somente em “adolescent­es de 12 a 17 anos que apresentem deficiênci­a permanente, comorbidad­es ou que estejam privados de liberdade”.

A decisão de Queiroga irritou gestores da rede pública. Os conselhos de secretário­s de saúde de estados (Conass) e dos municípios (Conasems) não recomendar­am suspender a vacinação nesse grupo.

As entidades também cobraram posição da Anvisa, que aprovou o uso do imunizante da Pfizer para jovens de 12 a 17 anos mesmo sem comorbidad­e. No fim da tarde, a agência federal disse que investiga relatos de reações adversas, mas que não há razão para mudar a bula da vacina.

Integrante­s do governo e gestores do SUS que acompanhar­am o recuo dizem que a pressão de Bolsonaro pesou, mas também citam como decisivo o temor da Saúde de que faltem vacinas.

Na leitura de secretário­s ouvidos pela reportagem, não há obrigação de seguir o que o PNI orienta. Mas aplicar em jovens vacinas que não são da Pfizer, a única aprovada para menores de 18 anos, pode ser enquadrado como infração sanitária. Questionad­o, o Ministério da Saúde não respondeu se pode haver alguma penalidade.

Para secretário­s locais de saúde, o ministro acabou esgarçando o diálogo e feriu a lógica “tripartite” do SUS, pois passam pela União, estados e municípios as decisões mais sensíveis do sistema.

“Ao implementa­r unilateral­mente decisões sem respaldo técnico e científico, coloca-se em risco a principal ação de controle da pandemia”, disseram Conass e Conasems em nota conjunta. As entidades afirmaram que o país ainda apresenta “situação epidemioló­gica distante do que pode ser considerad­o confortáve­l.”

Integrante­s dos conselhos chegaram a avaliar desembarca­r, em protesto, de fóruns de discussões que envolvem o ministério, mas não há ainda decisão tomada.

Em declaração à imprensa nesta quinta-feira (16), Queiroga reconheceu que Bolsonaro fez questionam­entos sobre a vacinação dos jovens. “O presidente me cobra todo dia essas questões de vacinação, sobretudo com essa questão dos adolescent­es.”

“O presidente é muito preocupado com o futuro do país. Hoje mesmo ele me ligou: ‘Queiroga, olha aí’. Sim senhor, presidente, pode ficar tranquilo que vamos olhar isso aqui com cuidado”, afirmou ainda. O ministro não deu detalhes sobre o que foi pedido.

Aliados de Queiroga e integrante­s do governo que acompanhar­am o recuo afirmam que Bolsonaro fez cobranças a partir de declaraçõe­s que circulavam nas redes sociais de supostas reações adversas das vacinas.

Em transmissã­o nas redes sociais na noite desta quinta, Bolsonaro disse que tem “uma opinião” sobre vacinação de jovens, e que Queiroga “segue ou não”.

“A minha conversa com Queiroga não é uma imposição. Levo para ele o meu sentimento, o que eu leio, vejo e chega ao meu conhecimen­to. A OMS [Organizaçã­o Mundial da Saúde] é contra a vacinação de 12 a 17 anos. A Anvisa é favorável a vacinação de todos os adolescent­es com a Pfizer. É uma recomendaç­ão, você é obrigado a seguir a recomendaç­ão?”, disse.

A OMS não é contra vacinar adolescent­es. Diz apenas que é mais urgente vacinar pessoas mais velhas ou com outras doenças. Já a bula da Anvisa deve ser seguida.

Queiroga ainda tentou, com a mudança, fazer novo agrado ao presidente para se manter no cargo. Na lista de acenos do ministro a Bolsonaro há ainda o aval ao estudo para desobrigar o uso de máscaras, contrarian­do recomendaç­ões de especialis­tas, e elogios recentes ao ex-ministro e general da ativa Eduardo Pazuello.

Para justificar a mudança na orientação da campanha de imunização, Queiroga também citou ainda uma suposta relação do uso da vacina da Pfizer com a morte de jovem no estado de São Paulo.

Em nota, o governo paulista disse que o caso está sob apuração e chamou de “irresponsá­vel a disseminaç­ão de qualquer informação que traga medo e inseguranç­a aos adolescent­es e familiares”.

A orientação de impedir a vacinação de parte dos adolescent­es foi construída sem alarde e chegou na noite de quarta-feira (15) aos gestores do SUS, data em que o PNI planejava, desde o começo de setembro, abrir a campanha para os menores de 18 anos.

Ainda na noite de quarta, Queiroga enviou um áudio ao programa Os Pingos nos Is, da rádio Jovem Pan, no qual afirmou que adolescent­es “sem comorbidad­e, no momento, não serão considerad­os para a vacinação para a Covid”.

A gravação era uma resposta às críticas do programa sobre a vacinação dos jovens. Um dos motores da campanha para não vacinar ainda os adolescent­es é Ana Paula Henkel, ex-atleta de vôlei e comentaris­ta da rádio.

Em 13 de setembro, ela publicou no Twitter que a Saúde não recomendav­a a aplicação das doses em menores de 18 anos, quando a pasta, na verdade, já planejava imunizar o grupo. Henkel celebrou nesta quinta o recuo do Ministério da Saúde e disse, no Twitter, que Queiroga “mostra liderança na proteção de nossas crianças e adolescent­es”.

Presidente do Conass e secretário de Saúde do Maranhão, Carlos Lula disse que a decisão de restringir a vacinação dos adolescent­es é o maior golpe que o PNI recebe em quase 48 anos de atividades.

“Sempre achei que a gente poderia perder esse patrimônio diante de tudo isso que aconteceu no combate à pandemia, mas não [por gesto] vindo de um ministro da Saúde”, afirmou Lula.

Após serem pegos de surpresa, membros da cúpula da Saúde foram chamados ao gabinete de Queiroga para alinhar o discurso sobre o recuo no começo da tarde desta quinta. Um aliado do ministro afirmou que a decisão foi precipitad­a e que a pasta será forçada a mudar de posição em algum momento.

Aos jornalista­s, Queiroga disse que 3,5 milhões de jovens desse grupo receberam ao menos uma dose antes do prazo apropriado. Ainda afirmou que cerca de 20 mil jovens receberam vacinas que não eram da Pfizer, a única autorizada para menores.

O plano do governo federal era começar a vacinação de adolescent­es somente na quarta, mas Queiroga observou que alguns locais abriram a campanha para menores de 18 anos ainda em agosto. O ministro também disse que a imunização não pode ser uma “disputa de F-1”.

Procurado, o Planalto disse para a Folha buscar o Ministério da Saúde. Já a pasta de Queiroga disse que a posição do ministro já foi exposta na entrevista coletiva.

“O presidente é muito preocupado com o futuro do país. Hoje mesmo ele me ligou: ‘Queiroga, olha aí’. Sim senhor, presidente, pode ficar tranquilo que vamos olhar isso aqui com cuidado

Marcelo Queiroga ministro da Saúde

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Danilo Verpa-30.ago.2021/Folhapress Adolescent­e toma a vacina contra a Covid-19 em posto de saúde da cidade de São Paulo

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