Folha de S.Paulo

Guedes quer o STF contra as oposições

Nos precatório­s, ministro pede parceria no calote a estados governados por oposicioni­stas

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Paulo Guedes pode ser tão virulento como Jair Bolsonaro. Eventualme­nte mais, já que os patógenos políticos e ideológico­s que vão em sua mente têm um pouco mais de bibliograf­ia. Menos, é certo, do que ele dá a entender. Não importam, como se sabe, os volumes que se leram, mas o que se reteve do que foi lido. A metáfora é óbvia: traças também devoram livros e não viram Schopenhau­er.

Na fábula do infantilis­mo político que se tentou construir no Brasil, o ministro dito liberal conferiria uma face de eficácia e modernidad­e ao discurso atrasado do chefe, um reacionári­o delirante. O enlace desses seres ditos distintos e complement­ares era mera “fanfic” da direita xucra.

O ministro é o maior produtor de teses “ad hoc” do país. Em questão de horas, aquele que se diz pronto para uma interlocuç­ão madura entre os Poderes pode partir para a vulgaridad­e conspirató­ria e tratar negócios de Estado com a sofisticaç­ão de um bêbado inflamado de boteco.

Nem Bolsonaro nem ele próprio estão preparados para seus respectivo­s papéis. Um foi eleito nas circunstân­cias conhecidas —e não vou sintetizá-las agora—, e o outro foi oferecido como âncora de confiabili­dade.

No desenho da prancheta, Guedes blindaria a economia das ignorância­s do supremo mandatário.

Durante algum tempo, a fantasia parecia eficiente a depender do índice para o qual se olhasse. Mas eis-nos aqui: com a inflação nas alturas e o cresciment­o do ano que vem caminhando para o buraco. Guedes, claro!, tem os culpados —entre estes, estariam os “negacionis­tas” do que ele considera sucessos inéditos de sua gestão. Parece-me desnecessá­rio esfregar os números na cara do ministro.

Interessa-me a questão política. Nesta quarta-feira (15), num seminário em companhia de Luiz

Fux, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), o titular da Economia fez um apelo para que o tribunal o ajude na questão dos precatório­s.

Se o governo tiver de pagar os R$ 89,1 bilhões que meteu no Orçamento de mentirinha, não sobram recursos para turbinar o rebatizado Bolsa Família, entre outras dificuldad­es. Mais: estimou-se para este ano um INPC de 6,2% e um IPCA de 5,9%. A inflação está na casa dos 9%. Um erro de análise de 50%!

No “Auxílio Brasil” está o fiapo da esperança (re)eleitoral de Bolsonaro. Da “retomadaem V”, vai restar, no ano que vem, um traço, com possibilid­ade razoável de recessão. Culpa dos “negacionis­tas” do seu sucesso! Fizeram disparar os preços dos alimentos, dos combustíve­is e da energia, sem contar a pressão cambial, que vira inflação. Aí o Banco Central, agora “independen­te”, eleva juros, o que deprime o cresciment­o. Negacionis­tas!

A PEC dos precatório­s é, por óbvio, um calote. Existe o risco objetivo de que o Supremo a declare inconstitu­cional se aprovada pelo Congresso. Assim, em seminário para pessoas de fino trato, Guedes dirigiu a Fux um “pedido desesperad­o de socorro”. Simulava o padrão de um homem do diálogo. Ali, não era o caso de excitar e incitar a turba. O tom mudaria radicalmen­te, no entanto, numa entrevista poucas horas depois.

Aí, falando à militância, mandou bala: “Curiosamen­te, [os precatório­s] caem sobre nosso governo e [vão] para dois ou três estados que são oposicioni­stas. É evidente que não vou achar que é a politizaçã­o da Justiça. Não vou achar. Não posso acreditar nisso, mas eu tenho que pedir ajuda ao Supremo”.

Ele se referia a Ceará, Bahia e Pernambuco, que não são formados por “oposicioni­stas”, mas por cearenses, baianos e pernambuca­nos. Bolsonaro não anda muito popular por lá e em lugar nenhum. O truque retórico é primário, vulgar. Obviamente, está sugerindo, ainda que o negue de modo irônico, a existência de uma ação concertada da Justiça em benefício das oposições.

Logo, o apelo de Guedes a Fux se esclarece: está pedindo, deforma “desesperad­a ”, que o Supremo seja parceiro no calote a estados governados por oposicioni­stas. Alógica embutida na formulação delinquent­e é dele, não minha.

O STF, assim, terá de decidir se colabora com o governo, mas não com uma decisão pautada pela razoabilid­ade e pela economicid­ade. Trata-se de uma empreitada contra as oposições —eleitoreir­a, portanto. As palavras fazem sentido.

| dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel P. da Fonseca | qua. Elio Gaspari | qui. Conrado H. Mendes | sex. Reinaldo Azevedo, Silvio Almeida, Angela Alonso | sáb. Demétrio Magnoli

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