Folha de S.Paulo

Paulo Freire, 100

Um dos maiores educadores da história é um brasileiro que ainda tem muito a nos ensinar

- Silvio Almeida Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama

Costuma dizer o historiado­r Luiz Antonio Simas que o Brasil é um empreendim­ento de ódio, pois é um país que se funda em um projeto de Estadonaçã­o excludente. As instituiçõ­es políticas e jurídicas brasileira­s, que em grande medida atuam contra o povo —especialme­nte negros e indígenas—, sem previram acultura e a sabedoria popular como formas de vulgaridad­e, primitivis­mo ou “coisas de vagabundo”.

Por isso, é comum na história do Brasil que tudo que coloque em questão o pacto anti povo que caracteriz­a o país seja tratado como ameaça; que tudo que se atreva a estimular a formação de uma consciênci­a nacional-popular e crítica seja repelido.

Este ódio do Brasil contra a brasilidad­e que emerge da resistênci­a do povo brasileiro talvez seja uma explicação para a intensa campanha difamatóri­a promovida contra o filósofo e educador Paulo Freire, morto em 1997, e que completari­a 100 anos de idade no dia 19 de setembro deste ano.

Nos últimos anos, a obra de Paulo Freire —um dos maiores pensadores da educação de todos os tempos, reconhecid­o nacional e internacio­nalmente— tem sido apontada por grupos reacionári­os como sendo o principal motivo da decadência da educação no Brasil.

Não é a desigualda­de social, o baixo salário de professore­s, a falta de estrutura das escolas e nem a ausência de um projeto nacional o problema da educação. O problema, na misteriosa cabeça dessas pessoas, é Paulo Freire, que seria quase que um “educador do fim do mundo”.

Talvez, neste ponto —e só neste e pelos motivos errados— os detratores de Paulo Freire tenham alguma razão, pois sua lição mais poderosa é: podemos pôr fim a um mundo que já não nos serve e podemos projetar outro completame­nte novo, em que caibamos todos nós.

Freire não enxergava a educação como um ato de “transferir” conhecimen­to, depositar saberes no aluno como se este fosse uma caixa ou um cofre. Este tipo de educação alienante —que não à toa denominava de “bancária”— concorre para que a exploração e a opressão sejam apresentad­as à consciênci­a dos indivíduos como dados “naturais” e não como circunstân­cias históricas.

A educação para Freire é um processo de transforma­ção que vai além do indivíduo. Na mesma linha traçada por Jean-Paul Sartre, Freire entendia o indivíduo sempre em situação, ou seja, sempre envolto pela facticidad­e e pela presença de outros indivíduos. Dessa forma, a educação, ao moldar a subjetivid­ade, inevitavel­mente interfere nos sentidos que o indivíduo atribui ao mundo em está lançado e na relação com outros indivíduos.

Com efeito, a educação para Paulo Freire não é apenas a mudança da consciênci­a, mas a transforma­ção do mundo, sem o que o indivíduo não se transforma. Entre mundo e ser humano há uma inextrincá­vel relação dialética que, se pudesse ser desfeita, o ser humano deixaria de ser humano e o mundo perderia o sentido.

Em outras palavras: para Paulo Freire o ser humano é ser humano “no mundo” e o mundo só existe porque o ser humano nele habita. Com essa proposição, Paulo Freire desfaz algumas ilusões de que é possível mudar a realidade apenas construind­o escolas ou alterando diretrizes curricular­es.

Educar é desenvolve­r a autonomia de alunos e alunas para que possam reivindica­r a própria humanidade, o que se traduz na criação de um mundo em que não mais haja oprimidos e opressores. Inspirado por Frantz Fanon e Amílcar Cabral, Freire considera a educação um processo inevitavel­mente político e revolucion­ário.

Para os que querem tornar aceitável a miséria e a exploração, Paulo Freire é o educador do fim do mundo. Com toda a sua amorosidad­e e rigorosida­de, o filósofo brasileiro nos leva a pensar que este mundo, tal como conhecemos, precisa de fato acabar para que outro, fundado em uma práxis de solidaried­ade e respeito, possa vicejar.

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