O jeitinho chinês
Restrições recentes estimulam soluções engenhosas, nem sempre ortodoxas
Tatiana Prazeres
Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheira sênior na direção-geral da OMC
Especialistas ainda hão de documentar o fenômeno, mas suspeito que China e Brasil se aproximem no jeitinho. Sim, há um jeitinho chinês que meu olhar de brasileira reconhece de longe. Os chineses podem ser criativos e engenhosos —ou mesmo espertos, beirando o limite do imoral ou ilegal— de uma maneira que os brasileiros costumam tratar como especialidade local.
Voltei a pensar nisso diante do festival de políticas e regulações que continua a pleno vapor na China. Novas regras para vários setores têm quebrado empresas, desafiado modelos de negócios e limitado práticas consolidadas. Essas dificuldades servem como um incentivo poderoso para soluções criativas por parte dos chineses.
No âmbito da educação, por exemplo, o governo adotou parâmetros para diminuir a pressão sobre os alunos e combater o aumento da desigualdade. As novas regras atingiram em cheio a indústria de aulas particulares para crianças e jovens. Entre outras medidas, a legislação força empresas do setor a se tornarem entidades sem fins lucrativos. Difícil se reinventar nessa base.
Mas como a demanda pelos serviços não desapareceu, cresce o mercado informal de professores particulares, ensinando crianças em casa. Mas esse arranjo é proibido aqui.
Jeitinho 1: professores particulares passam a prestar serviços como consultores ou mesmo como babás. E continuam fazendo o que sabem. Isso, no entanto, não resolve o problema das empresas que vinham oferecendo os cursos particulares.
Jeitinho 2, mais criativo e mais distante do ilícito: há notícia de empresas mudando o foco do serviço. O negócio passa a ser preparar os pais para transformá-los em tutores, em professores de aulas particulares dos próprios filhos. Como a regulação limita-se ao ensino a crianças e jovens, essa saída, focada nos adultos, contorna o problema.
Enquanto houver demanda, o jeitinho chinês se encarregará de fazer a ponte com a oferta.
O governo sabe que os chineses são criativos. Corre atrás dos professores que se apresentam como babás, mas se antecipa às soluções engenhosas.
Comentei aqui que, a partir deste mês, há também novas regras para avaliação dos alunos no ensino regular. Provas para crianças de até seis anos não são mais permitidas. Para os mais velhos, há limites quanto ao número de exames no ano letivo.
Eis a cereja no bolo, contida na própria regra: “Exames disfarçados sob outros nomes como pesquisa acadêmica também estão proibidos”. É o regulador se antecipando ao jeitinho chinês. Os pais insistirão para que escolas e professores mantenham a pressão sobre os alunos.
Já vi jeitinhos em outros assuntos também. O casamento entre casais do mesmo sexo não é permitido na China. No entanto, muitos interessados passaram a designar seus companheiros como guardiões legais, fazendo uso de uma lei originalmente concebida para proteger idosos. Assim, em caso de morte ou incapacidade, garantem alguns direitos uns aos outros.
Testando minhas impressões com amigos brasileiros que vivem em Pequim, todos tinham algo para contar que confirmava a tese do jeitinho chinês. Um deles imediatamente lembrou uma expressão em mandarim. Quando querem que o interlocutor, digamos, quebre um galho, com frequência os chineses perguntam: “Mas será que não tem uma entrada pelos fundos?”.
Em torno da mesa, os brasileiros esboçaram um sorriso de quem reconhecia o fenômeno.