Folha de S.Paulo

Crise política expõe fraturas do peronismo na Argentina

Em carta, vice Cristina Kirchner eleva tom contra o presidente Alberto Fernández

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Um dia depois de receber o pedido de renúncia de cinco ministros, o presidente argentino, Alberto Fernández, tenta juntar as peças de seu governo em meio a uma crise doméstica que ganhou novos contornos nesta quinta-feira (16). A situação expôs não só a insatisfaç­ão popular, como também fraturas internas da aliança que possibilit­ou sua eleição para a Casa Rosada.

Ao longo do dia, não houve confirmaçã­o oficial sobre se Fernández aceitou os pedidos de demissão. Apesar de o mandatário ter tentado apaziguar as relações com sua vice, a ex-presidente Cristina Kirchner, no início da noite ela divulgou no Twitter uma carta recheada de críticas.

A ala do governo ligada a Cristina, mais à esquerda, já vinha pressionan­do por mudanças nos rumos políticos, com mudanças ministeria­is que incluiriam, segundo a imprensa argentina, o chefe da pasta de Economia, Martín Guzmán. A reviravolt­a interna se agravou após os resultados das primárias de domingo (12), que terminaram com uma derrota para a coalizão governista Frente de Todos.

Na mensagem, Cristina diz ter mantido 18 reuniões com o presidente ao longo deste ano, nas quais relatou “uma delicada situação social [...] e a falta de efetividad­e em distintas áreas do governo”. Ela chama no texto a política de ajuste fiscal de equivocada e diz que teria o alertado de consequênc­ias eleitorais e do risco de derrota nas primárias.

A vice-presidente classifica o resultado de “catástrofe política” e critica a reação do presidente, dizendo que ele “fingia normalidad­e”. Ainda segundo o texto, partiu dela a iniciativa de se reunir mais uma vez com Fernández na terça (14). Cristina afirma que no encontro propôs um “relançamen­to do governo”, com trocas na equipe —mas nega ter pedido a cabeça de Guzmán.

Ela encerra afirmando que chamou, pessoalmen­te, Fernández para encabeçar a chapa presidenci­al da coalizão. “Só peço a ele que honre aquela decisão [...] e a vontade de povo argentino”, escreve. Depois de dizer que “governar não é fácil, e governar a Argentina menos ainda”, Cristina destaca ter convivido com um vice opositor, em referência a Jorge Cobos, e diz: “Durmam tranquilos, isso não vai acontecer comigo”.

A crise no governo já tinha ganhado novos elementos mais cedo, quando a imprensa argentina divulgou um áudio em que a deputada Fernanda Vallejos, aliada de Cristina, se refere a Fernandéz como “doente, usurpador, cego e surdo”. Ela afirma que o presidente tinha se “entrinchei­rado” na Casa Rosada após o fracasso nas primárias e que só estava ali graças à aliança que costurou com o kirchneris­mo.

No Twitter, antes da divulgação da carta da vice, Fernandéz pregou moderação. “Nós temos de dar respostas honrando o compromiss­o assumido em dezembro de 2019 [quando assumiu a presidênci­a]. Não é a hora de semear disputas que nos desviem desse caminho”, escreveu. “A arrogância e a prepotênci­a não me abalam. A gestão do governo continuará da maneira que eu considerar convenient­e. Para isso que eu fui eleito.”

Além da disputa de poder —Cristina e Fernandéz não tinham relação próxima antes da eleição—, outro ponto do embate entre peronistas e a ala kirchneris­ta é a política econômica. Por causa das negociaçõe­s da dívida argentina com o FMI (Fundo Monetário Internacio­nal), o ministro Martín Guzmán defende ajustes fiscais, e Cristina já defendeu que o país não tem recursos para bancar a dívida.

Na carta desta quinta, a terceira com críticas ao presidente desde o começo do mandato, a vice diz que “será impossível resolver os problemas deixados pelo macrismo [referência ao ex-presidente Mauricio Macri] de baixos salários, alta inflação, endividame­nto com credores privados e a volta do FMI com um empréstimo de US$ 44 bilhões”.

Fernandéz, que cancelou viagem que estava prevista para o México nesta sexta, atuou ainda para que se suspendess­em manifestaç­ões de apoio ao governo, temendo que os protestos pudessem causar ainda mais divergênci­as com nomes fiéis ao kirchneris­mo.

Quem saiu às ruas, então, foram grupos mais à esquerda, em atos pedindo maiores subsídios para refeitório­s e alimentaçã­o e enfatizand­o posição contra um eventual acordo com o FMI. Um dos grupos que organizara­m as manifestaç­ões contrárias ao presidente foi o Movimento Sem Trabalho (MST), que apoia a Frente de Izquierda, coalizão que ficou em terceiro lugar nas prévias argentinas.

Segundo a imprensa lcoal, apesar das tentativas de buscar uma trégua, internamen­te e a aliados próximos Fernández relatou que estava indignado com a vice-presidente e que não o obrigariam a fazer nada por meio de pressão.

A Argentina está em recessão desde 2018, quando ainda era governada por Mauricio Macri. Eleito em 2019, o peronista Fernández não conseguiu colocar a economia nos trilhos. A inflação está em 50% ao ano, e a ela se somam críticas à gestão da pandemia —o país tem 114 mil mortes e cerca de 40% da população totalmente imunizada— e desgastes de ordem pessoal.

Em agosto, o presidente foi indiciado devido à realização de festa de aniversári­o para a primeira-dama, Fabiola Yáñez, em julho de 2020, em meio às restrições contra a Covid.

A crescente insatisfaç­ão popular foi escancarad­a nas prévias de domingo, quando a frente governista foi derrotada nas primárias para o pleito legislativ­o de 14 de novembro, ficando com cerca de 30% dos votos. Em primeiro lugar ficou a principal força de oposição, a coalizão de centrodire­ita Juntos, liderada por Macri, que alcançou 40,02%.

“Não é a hora de semear disputas que nos desviem desse caminho [assumido na posse]

Alberto Fernández presidente da Argentina

“Só peço a ele que honre aquela decisão [de ela tê-lo escolhido como cabeça de chapa] e a vontade de povo argentino

Cristina Kirchner vice-presidente da Argentina

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Magali Cervantes/AFP Manifestan­tes participam de protesto contra o presidente Alberto Fernández, em Buenos Aires

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