Folha de S.Paulo

O Brasil sem ética

Falta de credibilid­ade dos tribunais esportivos é mais antiga que o Brasileiro

- Paulo Vinicius Coelho Jornalista, autor de “Escola Brasileira de Futebol”, cobriu seis Copas e oito finais de Champions

A falta de credibilid­ade dos tribunais esportivos é mais antiga do que o Campeonato Brasileiro, mas a falta de harmonia entre os poderes e a crise do Judiciário deste país fizeram tudo piorar, com a mistura de famílias e interesses.

O presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) é Otávio Noronha, filho de João Otávio de Noronha, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que suspendeu o trâmite de denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro contra o senador Flávio Bolsonaro, o ex-assessor Fabrício Queiroz e outros 15 investigad­os no caso das rachadinha­s.

João Otávio de Noronha é amigo de Jair Bolsonaro, e os filhos, Otávio e Flávio, também se conhecem bem, do reino da Barra da Tijuca, a aproximada­mente 15 quilômetro­s da residência de Rodolfo Landim, presidente do Flamengo, que mora em São Conrado.

Era mais romântico quando, em plena ditadura militar, no Campeonato Carioca de 1969, o advogado José Carlos Vilela defendia o centroavan­te Flávio, do Fluminense, com um argumento sui generis.

Expulso no domingo (25 de maio) contra o Vasco, não poderia enfrentar o América no sábado (31 de maio). Vilela conseguiu uma medida liminar na Justiça comum, argumentan­do que nenhum cidadão poderia ser condenado sem defesa prévia. Ora, Flávio tinha sido expulso de campo! Mas jogou e fez o gol da vitória tricolor por 2 a 1 aos 40 minutos do segundo tempo.

Inconforma­do, nosso eterno amigo José Trajano brigou no Maracanã, não em defesa do América, mas do argumento e da Justiça. Flávio não podia estar em campo, portanto, não podia fazer o gol da vitória. O Fluminense foi campeão três semanas depois, dois pontos à frente do Flamengo.

O depoimento do presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, é comovente. “Eu estou envergonha­do. Lutei pela Liga, viajei para tratar da Liga e estamos vivendo esta situação.” Disse isso sobre o risco de adiamento da rodada, movido por uma ação individual­ista do Flamengo.

Se o conselho técnico tomou a decisão de só retomar público quando 100% dos clubes estiverem liberados a abrir seus portões, cumpra-se o regulament­o aprovado. Mesmo que seja discutível se pode ou não haver retorno da torcida neste momento da pandemia.

O governador de São Paulo, João Doria, prevê a reabertura em 1º de novembro. A decisão está diretament­e ligada ao fato de o GP de São Paulo de F1 ter sido agendado para Interlagos, em 14 de novembro.

O problema do Campeonato Brasileiro não está restrito a São Paulo. Envolve os 20 clubes, que devem buscar, em conjunto, a liberação. O Palmeiras jogará as semifinais da Libertador­es sem torcida no Allianz Parque e com torcedores do Atlético-MG no Mineirão. É o regulament­o da Libertador­es. Cumpra-se.

As regras do Brasileiro são outras, aprovadas em conselho técnico.

Enquanto não houver o consenso de que os problemas coletivos devem ser solucionad­os com visão global, o Brasil seguirá na periferia, sem fazer nem cócegas em Champions League, Premier League, Liga Espanhola e até no Campeonato Mexicano.

Dói perceber que, em 2021, prevalece a velha lei de Eurico Miranda. Dizia-se que Eurico fazia bem ao Vasco e mal ao futebol brasileiro. Ora, se fazia mal ao futebol brasileiro, fazia mal ao Vasco —parte deste país.

Certa vez, ao ouvir essa observação deste colunista, Eurico Miranda telefonou, enfurecido. Dizia: “Eu não admito que você diga que faço mal ao Vasco”.

Não fez nenhuma restrição sobre a parte de fazer mal ao futebol do Brasil.

A família Noronha provavelme­nte faz muito bem... à família Noronha.

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