Carmela Gross revê a ditadura e evoca nova tragédia do país em obras na Bienal
Artista Carmela Gross revê a ditadura e evoca a tragédia atual do Brasil em obras inéditas e históricas na Bienal de São Paulo e outras duas mostras, clamando por uma arte de combate
“Toda vez que há um embate com a situação política tão grande quanto o que a gente vive, a arte adquire forças até para partir das cinzas, renascer e repropor o combate. Meus trabalhos falam da repressão, não são paisagens bonitas
Uma multidão anônima se aterroriza numa das paredes da galeria Vermelho, em São Paulo. Nas 226 colagens de Carmela Gross, cortes irregulares e grosseiros formam olhos e bocas em manchas escuras, que se tornam rostos quase carbonizados, em agonia permanente.
Já na 34ª Bienal de São Paulo, no parque Ibirapuera, 150 monotipias da artista também com padrões escuros dão outra resposta às tragédias de hoje. “Boca do Inferno” repete, num paredão, imagens de um vulcão de massa escura, que se adensa próximo à erupção. “Todos esses trabalhos se unem por um momento trágico”, afirma Gross, que expõe obras na Vermelho, na Bienal e também no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro ao mesmo tempo.
“Trágico enquanto situação global, enquanto humanidade que está se perdendo, em relação ao planeta. E o vulcão é esse fogo vital, que, ao mesmo tempo que destrói, regenera possibilidades. Regenera porque é fogo, calor, luz.”
“Boca do Inferno” e “Cabeças”, a obra dos rostos, compõem um retrato da produção atual da artista, com outros trabalhos feitos nos últimos dois anos. Nelas, Gross evoca um “momento dramático da vida brasileira”, tanto ao sugerir esse fogo que destrói e que é uma espécie de norte, quanto ao invocar o codinome do poeta português Gregório de Matos, que também “fala dos costumes e da precariedade da nossa sociedade”.
Mas é também uma Carmela Gross ainda dos anos 1970, antes de se firmar no cenário artístico nas duas décadas seguintes, que faz uma alusão contundente à história espiralar brasileira que esbarra, de novo, no autoritarismo.
Ela remonta nesta edição da Bienal três obras que estiveram na famosa Bienal do Boicote, em 1969, quando artistas resolveram boicotar o evento durante a ditadura militar. “Meus trabalhos falam dessa repressão. Eles não saem de cena, não estou ali fazendo paisagens bonitas nem uma evocação de uma arte alegre e feérica. O que há ali são trabalhos dramáticos.”
Carmela Gross artista visual
Materiais urbanos e brutos, como colchão, lonas e barril, constituem essas três peças que, apesar de independentes, denunciavam o regime ditatorial como conjunto.
O grande colchão, “Presunto”, lembra no nome as mortes de torturados, que tinham seus corpos jogados em acostamentos. “Barril”, formado pelo objeto de mesmo nome comum nas cidades, ganha outras conotações nesse contexto repressivo, já que barris cheios d’água eram usados como instrumento de tortura.
“Isso já era depois do AI-5, que trouxe restrições, mortes, prisões e todo um conjunto de coisas muito violentas”, diz Gross, sobre o contexto da primeira montagem das três obras. “Eu era jovem e absorvia isso um pouco pelos cantos, porque não tinha plena consciência, mesmo porque isso era uma atividade secreta, do Exército, das mortes, da luta armada.”
Se hoje debatemos todo dia a ameaça autoritária do governo Bolsonaro, Carmela Gross recorda que aquele não era um momento em que o acesso às informações era simples. Sem telefone em casa, sem ter a quem perguntar sobre o que estava acontecendo, o clima, segundo ela, era rarefeito.
Enquanto perdia contato com amigos que iam para a luta armada, ou via universidades sendo desmanteladas, Gross participou do concurso para o pavilhão do Brasil na Exposição Universal do Japão de 1970 como parte da equipe de Paulo Mendes da Rocha e dava aula de desenho todo domingo para crianças na Biblioteca Mário de Andrade.
“A multiplicidade de acontecimentos e da vivência deles formam um cenário que não é um samba de uma nota só”, diz a artista paulistana.
Essas oficinas de desenho com outros colegas, aliás, são retomadas num artigo do crítico Paulo Miyada num livro sobre Gross, publicado pela editora Cobogó, também como uma atividade elementar no regime em que se vivia.
“Em um contexto de ditadura, em que a possibilidade de construção a partir das autonomias das inteligências dos sujeitos parecia cada vez mais remota, é significativo que esses jovens tenham escolhido acreditar que o desenho poderia se constituir como ferramenta emancipadora”, escreve Miyada.
Hoje com 75 anos, Gross vê paralelos entre a carga autoritária do Brasil dos anos 1970 e o país de hoje. “De novo a gente vê aflorar todo o autoritarismo, todas as arbitrariedade desse governo, toda a parte muito pesada de apagar os artistas, a cena cultural, o jornalismo, todos os focos de informação, de entendimento e de troca”, diz ela.
A atmosfera rarefeita, cheia de ocultações, também está em “Carga”, a terceira das obras remontadas nesta Bienal. Na instalação, lonas pesadas lembram estruturas de tendas informais que se veem pela cidade, mas escondem um volume incerto. “Para mim, elas eram essas cabanas que os operários montavam na rua para fazer consertos e ali se trocavam, comiam. Ou uma carga que fica na calçada esperando o dia seguinte para irem buscar”, afirma.
São peças que, de certo modo, reproduzem o que estava acontecendo nas ruas também como esse grande canteiro de obras, que atravessa todo o trabalho de Gross. “A rua é esse lugar político, dos acontecimentos sociais. É o lugar dos encontros, das restrições, das grandes lutas e embates sociais”, afirma.
É para as ruas que se volta, por exemplo, “Vulcão”, obra na empena cega do MAM do Rio com quatro por seis metros, formada por fitas de luzes amarelas e vermelhas.
Na Vermelho, “Fonte Luminosa” também remonta essa erupção com néon — lâmpadas que a própria artista disse, em entrevista publicada no mesmo livro da Cobogó, virem acompanhadas “das condições mais degradadas da vida na cidade”.
Nesse retorno ainda incerto ao espaço público como lugar de convivência, e nessa escalada autoritária do governo, a artista acredita que há uma retomada de um comentário mais contundente do contexto social e político nas artes.
Na Bienal, por exemplo, uma série de artistas retoma o passado brasileiro para mostrar como o país não avança ou se vale de outras culturas, como a dos povos originários, para pensar em alternativas para o fim do mundo. Várias dessas peças, inclusive, estão na ala das monotipias de Gross que se organizam em torno do meteorito que sobreviveu ao incêndio do Museu Nacional.
“Toda vez que você tem um embate com a situação política tão grande quanto o que a gente vive, a arte adquire forças até para partir das cinzas, renascer e repropor o combate.” Leia mais na pág. C9
Fendas, Fagulhas
Galeria Vermelho - r. Minas Gerais, 350, São Paulo. Sex. (17), das 10h às 19h. Sáb. (18), das 11h às 17h. Grátis
34ª Bienal de São Paulo
Pavilhão da Bienal, av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, pq. Ibirapuera, portão 3. Ter., qua., sex. e dom., das 10h às 19h. Qui. e sáb., das 10h às 21h. Até 5/12. Grátis
Vulcão
Área externa do MAM do Rio av. Infante Dom Henrique, 85, Rio de Janeiro. Até novembro