Folha de S.Paulo

Mesmo irritados, evangélico­s não recorrem a Lula

Datafolha mostra que popularida­de do presidente caiu 11 pontos, mas petista ainda não capitalizo­u

- Anna V. Balloussie­r e Bruno Boghossian

Não houve gesto terrivelme­nte evangélico capaz de brecar a queda na popularida­de de Jair Bolsonaro nessa parcela religiosa do eleitorado. De janeiro para cá, a aprovação do presidente levou um tombo consideráv­el num dos segmentos que ele mais corteja. Hoje, 29% dos evangélico­s consideram seu governo ótimo ou bom. Eles eram 40% no começo do ano.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, contudo, não conseguiu tirar uma casquinha da sangria de Bolsonaro nesse segmento.

A mesma pesquisa Datafolha que a detectou mostra o petista, que deverá polarizar com o presidente a disputa de 2022, com 44% das intenções de voto no segundo turno contra 43% de Bolsonaro —manteve-se, portanto, o empate técnico aferido em sondagens passadas.

O presidente manteve no primeiro turno a preferênci­a de 38% dos eleitores dessa religião, considerad­a a principal simulação feita pelo instituto. Lula variou de 37% para 34%. Dentro da margem de erro para o voto evangélico, de três pontos para mais ou para menos, os dois ainda lutam de igual para igual.

Há algumas abas a abrir a partir dessa janela revelada pelo Datafolha:

1) Bolsonaro anda para cima e para baixo com seu núcleo duro de pastores capitanead­o por Silas Malafaia, como se a perspectiv­a de uma guerra santa entre “nós, os cidadãos de bem”, e “eles, os depravados comunistas”, bastasse para garantir o seu apoio.

Mas há outros fatores em jogo, e os índices econômicos merecem destaque para lembrar que o evangélico não vota só com a Bíblia embaixo do sovaco. Sobretudo quando falta feijão no prato.

2) E o Lula, hein? Esse eleitorado devoto já lhe teve em alta conta, preferindo-o ao tucano Geraldo Alckmin em 2006. Mas, hoje, nem a piora na avaliação do principal adversário do petista amoleceu parte do eleitorado evangélico.

Embora tenha um desempenho semelhante ao do presidente entre os evangélico­s, Lula enfrenta uma rejeição acima da média nessa fração populacion­al: 47% deles dizem que não votariam no petista de jeito nenhum. Consideran­do o conjunto total de eleitores, esse índice é de 38%.

Já a antipatia a Bolsonaro é mais suave no grupo: 44% não cogitam escolher o capitão reformado nas urnas, bem abaixo de seus 59% na média nacional.

O levantamen­to do Datafolha foi realizado nos dias 13 a 15 de setembro, com 3.667 pessoas entrevista­das presencial­mente em 190 municípios. A margem de erro é de dois pontos para mais ou menos, considerad­a a amostra total de entrevista­dos.

Primeiro, há o recuo do respaldo a Bolsonaro entre evangélico­s. Em 2017, o Datafolha detectou que oito em cada dez brasileiro­s não costumam levar em conta a opinião de seus líderes religiosos quando eles fazem campanha por algum candidato. O contingent­e evangélico que dá ouvidos a seus pastores foi só um pouco mais alto, 26%.

Logo, o peso que se dá à variável religiosa não necessaria­mente correspond­e à cartografi­a eleitoral.

A retração de cinco pontos entre os evangélico­s pode ser considerad­a uma redução significat­iva, uma vez que os indicadore­s da popularida­de de Bolsonaro ficaram praticamen­te estáveis de julho para cá.

Em outros segmentos numerosos da sociedade, só houve quedas maiores ou semelhante­s em faixas como os mais pobres (-4 pontos), pessoas que têm apenas o ensino fundamenta­l completo (-6) e nas regiões Norte e CentroOest­e (-11) do país.

Uma das possíveis explicaçõe­s para a variação é o fato de que, até agora, o eleitorado evangélico se comportou como um bolsão de apoio ao presidente, com avaliações mais generosas do que a dos demais segmentos.

Bolsonaro tinha gordura para queimar nesse eleitorado. Desta vez, enquanto os índices do presidente entre os católicos se estabiliza­ram no que parece ser um piso na faixa dos 20%, ainda há margem para que o segmento evangélico sinta os impactos de fatores negativos como inflação, desemprego e a pandemia.

Apesar da queda, os evangélico­s ainda estão entre os blocos sociodemog­ráficos que têm uma visão mais favorável do presidente. Têm a companhia dos brasileiro­s com renda superior a cinco salários mínimos (35% de aprovação) e os moradores da região Sul (28%).

“O Brasil não se tornou mais conservado­r porque se tornou mais evangélico”, diz a antropólog­a Lívia Reis, do Iser (Instituto de Estudos da Religião). “Não é razoável pensar que 30% da população que se identifica como evangélica flerte com o autoritari­smo. Religião, no fim das contas, é apenas mais uma variável, ainda que importantí­ssima, da vida social das pessoas, mas não é a única.”

Não é ostentando a carteirinh­a do clube conservado­r que Bolsonaro vai fidelizar esse eleitor, segundo Reis. Evangélico­s, que ainda são em sua maioria a população mais pobre desse país e que em algum momento fizeram parte da famigerada classe C, tiveram uma piora significat­iva nas condições de vida no segundo governo da Dilma, “e isso é inegável”, ela afirma.

“O que eles não poderiam imaginar é que essa crise poderia se aprofundar ainda mais como estão vendo acontecer agora. Evangélico­s são pessoas comuns que também querem comer, ter um emprego [formal], custo de vida menor, direitos sociais assegurado­s. Não é isso que está acontecend­o, mas o contrário.”

O fato de Lula ainda não ter conseguido capitaliza­r com a liquefação bolsonaris­ta nessa faixa cristã sinaliza que o petista pode ter voltado algumas casas e se reaproxima­do da imagem demonizada que possuía em 1989.

Naquele pleito, o bispo Edir Macedo comandou uma vigília em prol de Fernando Collor na qual fiéis cantavam “o diabo na corda bamba, vamos collorir, vamos collorir”.

Nos anos 2000, o petista foi bem-sucedido em desfazer essa birra com boa parte dos megapastor­es do país, e Dilma Rousseff herdou parte desse legado nas urnas.

A última década, no entanto, trouxe novos elementos à mesa. A emergência das pautas identitári­as é um deles. Movimentos como o negro, o feminista e o LGBTQI+ não nasceram ontem, claro. Mas sua atuação na arena pública ganhou relevo inédito.

O ricochete conservado­r foi uma consequênc­ia natural desse fenômeno, e Bolsonaro soube tirar proveito disso como poucos.

Só de bater o olho no mais recente editorial da Folha Universal, jornal da igreja do bispo Macedo, já é possível ter um vislumbre da força que esse discurso tem: “A verdade sobre o feminismo atual que não querem que você saiba”. Spoiler: estamos lidando com um “grupo rancoroso que parece fazer de tudo para destruir o que há de bonito nas mulheres”.

O atual presidente também teve êxito ao conjurar um mofado anticomuni­smo e fazer dele o feijão do arroz antipetist­a. A aliança com pastores é crucial para propagar a ideia de que, com a esquerda no poder, a liberdade religiosa e a família tradiciona­l estão a perigo. Deus os livre.

Para Reis, “é evidente que qualquer pauta moral se torna secundária se as pessoas não vivem com dignidade”. Quando Lula se mostra disposto a priorizar a economia na batalha eleitoral que o aguarda, é porque vê aí o calcanhar de Aquiles do bolsonaris­mo.

Nas eleições municipais de 2020, a pauta moral apareceu de forma incidental nas campanhas de políticos com identidade religiosa monitorado­s pelo Iser em oito capitais, segundo a antropólog­a do instituto.

Ela cita a derrota de Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, na disputa pela reeleição à Prefeitura do Rio no ano passado e faz previsão para 2022. “Arriscaria dizer que a pauta moral não fará diferença alguma para definição do chefe do Executivo nacional.”

O fato de Lula ainda não ter conseguido capitaliza­r com a liquefação bolsonaris­ta nessa faixa cristã sinaliza que o petista pode ter se reaproxima­do da imagem demonizada que possuía em 1989

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