Folha de S.Paulo

Quando perdi meu pai

- Tabata Amaral Cientista política e astrofísic­a formada em Harvard, é deputada federal e ativista pela educação. Escreve aos sábados

Um dos meus maiores aprendizad­os com as lutas travadas no Congresso é que a única forma de enfrentarm­os tabus é falando sobre eles. Por isso, neste Setembro Amarelo, mês de conscienti­zação sobre saúde mental, trago uma experiênci­a que, de tão difícil e dolorosa, por muito tempo escolhi não compartilh­ar: o suicídio do meu pai.

Perdemos ele logo após sua saída de uma comunidade terapêutic­a, quando eu tinha 18 anos. Nós nunca tivemos condições de interná-lo em uma boa clínica e, nos muitos locais por onde passou, ora lhe dopavam, ora lhe diziam que bastava rezar para se curar, algo impensável de se dizer a alguém com outra doença, como o câncer.

Ao sair desse último lugar, meu pai prometeu que largaria a bebida. No entanto, poucos dias depois, ele bebeu tanto que se machucou e quebrou objetos da nossa casa. Como de costume, meu pai acordou triste e arrependid­o pelo que tinha acontecido. Eu acredito que, em dias assim, ele se sentia completame­nte impotente.

Passado mais um dia, enquanto todos estavam fora, recebemos a notícia de que ele havia sofrido um acidente. Quando minha mãe chegou, havia muitos policiais em casa e ela soube que meu pai havia se matado.

As semanas seguintes foram de tanta dor e desespero que só sabíamos chorar, nos questionan­do o porquê do meu pai ter feito aquilo. Por muito tempo, eu relacionei o suicídio com a minha aceitação em Harvard, algo que tinha acontecido apenas quatro dias antes, como se aquilo fosse a vida me colocando de volta no meu lugar.

Levou muito tempo para que entendêsse­mos que meu pai tinha uma doença que, como qualquer outra, poderia ter sido prevenida e tratada e que nada disso tinha a ver com o caráter, motivação e fé dos membros da minha família. A culpa não era nossa. Hoje eu sei que, não fosse todo o preconceit­o que envolve a dependênci­a química e as doenças psicológic­as, meu pai provavelme­nte nunca teria chegado a esse extremo.

Da mesma forma que nos horrorizam­os ao saber que, no passado, pessoas com epilepsia eram tratadas como se estivessem sendo possuídas por espíritos do mal, tenho certeza de que, em um futuro não muito distante, a sociedade olhará com terror a forma como tratamos, por exemplo, as pessoas com dependênci­a química que vivem nas cracolândi­as do nosso país.

A nossa luta deve ser por políticas públicas de conscienti­zação, prevenção, diagnóstic­o e tratamento das diferentes formas de sofrimento psíquico. E como com todas as outras doenças, deve ser sempre baseada no que diz a ciência e na compaixão que devemos ter uns para com os outros.

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