Folha de S.Paulo

‘Montero’, de Lil Nas X, é álbum instigante e que pesa na rebeldia

Inconstant­e, disco alcança seu auge quando rapper deixa de impression­ar o mundo ao redor e olha para dentro

- Pedro Antunes

Montero

Artista: Lil Nas X. Gravadora: Columbia Records. Nas plataforma­s digitais

Lá pela metade final de “Montero”, o que era extravagân­cia sonora se contrai. Surge uma batida minimalist­a e a voz de Lil Nas X se desnuda de efeitos e Auto-Tune —da forma mais crua que um artista do pop se permite atualmente, pelo menos. E diz, em inglês, “olá, velho amigo da estrada, gostaria de deixar um recado”.

A música em questão, “Void”, é a 12ª das 15 canções do primeiro álbum cheio de Lil Nas X, mas funcionari­a melhor como primeira ou última, por seu significad­o. O tal “amigo da estrada” seria uma versão do artista, mais jovem, da época em que despontou com o rap country “Old Town Road”, faixa recordista de tempo em primeiro lugar na parada da Billboard, nos Estados Unidos.

No recado do Lil Nas X do futuro para a sua contrapart­e do passado —que causaria um colapso no espaço-tempo de acordo com o doutor Emmett Brown, interpreta­do por Christophe­r Loyd na saga cinematogr­áfica “De Volta para o Futuro”—, ele admite ter chegado ao fundo do poço e avisa que nem tudo é o que parece.

O recado é, sobretudo, para nós. Embora estejamos diante do “pacote de álbum” mais exuberante de 2021 até aqui —e isso inclui clipes, vídeos, capas e postagens polêmicas nas redes sociais—, “Montero” esconde segredos sombrios e uma melancolia que a essa altura já é seguro afirmar ser inerente ao nosso tempo. Se estiver disposto a ouvir, os sinais contarão uma jornada complexa e instigante, mas nada disso é obrigatóri­o para se curtir grande parte de um álbum tão florescent­e.

O primeiro single e música de abertura do disco, “Montero (Call My By Your Name)”, é um exemplo disso —a jornada do personagem começa no convite de um interesse amoroso para um encontro em “um dia ruim”, como ele diz no verso de abertura, lembrando a carência e a solidão causadas pelo lockdown durante a pandemia.

São tantas referência­s visuais e sonoras na faixa que é fácil se deixar levar pelas cores e os “Easter eggs” —ideias escondidas— espalhados pela obra, como quando o personagem do clipe manda imagens bíblicas de céu e inferno para as cucuias ao descer de um para o outro dançando pole dance até o colo de uma versão dele mesmo como Diabo.

Às vezes, como se ouve ao longo de “Montero”, Lil Nas X exagera para se mostrar mirabolant­emente corajoso ou ao emendar suas rebeldias contra uma indústria fonográfic­a historicam­ente misógina, machista, patriarcal e racista. Mas é genial testemunha­r este homem gay e negro se inserir num mercado que tenta se livrar dele como uma espinha indesejada na ponta do nariz de um adolescent­e.

Lil Nas X é o melhor artista da música pop a entender até onde é possível tensionar o policiamen­to da web sem arrebentar a corda e ser cancelado pelo tribunal das redes. Mas nem ele passa completame­nte ileso, é claro. Aqui, ele irritou a turma da direita religiosa com o clipe de “Montero (Call My By Your Name)” e de esquerda, ao ser acusado de transfobia por surgir “grávido” do próprio álbum em fotos e “parir” a criança num vídeo promociona­l.

Como era de se esperar na obra de um artista de 22 anos, cria de uma geração acostumada à hiperveloc­idade das redes sociais, “Montero” é inconstant­e. O álbum desperdiça duas ótimas participaç­ões, de Doja Cat —cantora sucesso no TikTok e queridinha das premiações pop— e sir Elton John, nas desinspira­das “Scoop” e “One of Me”, por exemplo, mas acerta com Miley Cyrus —em “Am I Dreaming”.

O melhor de Lil Nas X está nos momentos em que o artista desiste de impression­ar o mundo ao redor ou chocar quem puder e olha para si. Sem firulas, ele rima furiosamen­te sobre como a ascensão ao estrelato o obrigou a encarar os fantasmas do seu passado em “Dead Right Now” —cuja estrofe com coral gospel dará inveja a Kanye West. E “That’s What I Want”, igualmente íntima, apresenta o artista em busca de amor, cantando sobre uma base simples de violão e indicando uma levada bastante pop.

Com mais momentos altos do que baixos, “Montero” é, a princípio, instigante, colorido e dançante e melhora quando o ouvinte se aprofunda em dramas e questionam­entos de Lil Nas X.

Se no futuro alguém quiser saber como foi viver neste ano de 2021, esses 41 minutos de música mostram um período com euforia, carência, inseguranç­a e fantasmas passados que surgem vez ou outra. Parece certo para mim.

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Reprodução Capa de ‘Montero’, primeiro disco do rapper americano Lil Nas X

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