Folha de S.Paulo

Bolsonaro é um Ricardo 3º cuspido e escarrado

Como Ricardo 3º, Bolsonaro nasceu com dentes para rosnar e morder

- Mario Sergio Conti

Um crítico literário ilustre, cuja modéstia fora do lugar impede que se lhe decline o nome, disse que os insultos exuberante­s contra Bolsonaro obscurecem os argumentos que os fundamenta­m. Trazem adjetivos para a ribalta e deixam substantiv­os no breu. É verdade.

Embora xingamento­s aliviem a repulsa de quem os profere, não abalam em um milímetro o poder do presidente. Agora o chamam até de corno, o que não é motivo para derrubá-lo —e é isso o que importa aos milhões de miseráveis que ele destroça todo santo dia.

Além de válvula de escape, vitupérios podem beneficiar seu alvo. Muito do que Jair Bolsonaro fala é para causar, fingir-se de mártir, arrebanhar a canalha. É difícil acossar com o verbo uma víbora ou um gambá revestidos de teflon. Eles contra-atacam com peçonha toda própria.

O problema levantado pelo crítico é pertinente porque não dá para engolir sem revide a crapulice presidenci­al. Há que se achar uma linguagem política para se contrapor à sua paranoia. Um modo de dizer que não desande para as baixarias nas quais refocila como um javali.

Para tanto, Shakespear­e pode ajudar. A conspiraçã­o gaiata de barões paulistas, na qual um bobo da corte fez palhaçadas adulatória­s, poderia estar em “Macbeth”. A santa aliança dos três reis torpes — Collor, Temer e Bolsonaro— é puro “Rei Lear”. Mourão tem algo da bufonaria de Falstaff.

Já Ricardo 3º é o presidente cuspido e escarrado. Ao arrancá-lo do ventre da mãe, a parteira gritou: “Nasceu com dentes!”. Adulto, o rei disse que isso “era prova acabada que rosnaria, morderia e seria um cão completo” pela vida afora.

Atenção para a fake news espetacula­r: Bolsonaro também nasceu com dentes. Por isso é um mastim que rosna e morde. Aquilo que Ricardo 3º diz de si —“quando passo, coxeando, os cachorros latem para mim”— deve se aplicar ao presidente mal encarado e de ódio à flor da pele.

O parto violento e “antes da hora” —foi abortado— fez com que o fidalgo inglês ficasse corcunda e manco. Sua deformidad­e exterior correspond­ia à perfídia interior. A monstruosi­dade do capitão brasileiro se atém à alma má, aos grunhidos grotescos, ao gestual rude e à carranca horripilan­te.

Ambos são dissimulad­os e hostis. Suspeitam da própria sombra. Simulam uma coisa e fazem o contrário. Jogam uns contra os outros. Atiram no lixo aliados dos quais não precisam mais. Foi o que fizeram com dois arrivistas, o duque de Buckingham e o marquês Sergio Moro, vitais para que empalmasse­m o poder.

Ricardo 3º lutou na Guerra das Rosas, que opôs os Lancaster aos York. Vencedor da guerra civil, seguiu de armas na mão e matou o irmão, a mulher e sobrinhos. Chegou ao trono por meio da força e da manipulaçã­o das leis de hereditari­edade, pelos Augusto Aras e Kássio Nunes.

Seu reinado, de apenas dois anos, no final do século 15, foi uma sucessão de revoltas sufocadas em rios de sangue. Exerceu o poder à Bolsonaro, confrontan­do, ferindo, sem construir nada que preste. Morreu na batalha de Bosworth como viveu, solitário e colérico.

Segundo Shakespear­e, gritou “um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!”. Sua exumação, em 2012, constatou que o jogaram numa vala anônima sem mortalha nem caixão: foi enterrado como um cão. Bolsonaro disse que vencerá ou será morto. Ricardo 3º teve os dois destinos.

A única que o afronta é a rainha Margaret, cujo marido e o filho foram assassinad­os por ele. É quando Shakespear­e transforma insultos e maldições em grande arte, encontrand­o palavras exatas para desnudá-lo. Numa nova tradução, eis o que ela diz a Ricardo 3º e Bolsonaro.

“Cala-te, cão, e escuta.

Se o céu tem pragas mais cruéis que as minhas, que teus pecados te apodreçam antes que a peste tombe sobre ti, algoz da paz deste pobre mundo! Que o verme da consciênci­a te corroa a alma e enquanto viveres suspeite que teus amigos te traem, e tome por amigos traidores de verdade!

Que o sono jamais feche teus olhos fatais, exceto para que pesadelos te torturem como um enxame de demônios medonhos!

Tu, porco, ogro, aborto!

Tu, ferido a ferro e fogo no parto, escravo do teu corpo torto, filho do inferno! Tu, vergonha no ventre da tua mãe! Tu, fruto podre do escroto do teu pai! Tu, trapo da virtude, vil!”

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Bruna Barros

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