Até o Sol mudou de cor no interior de SP sob chamas
Céu do interior paulista tem ficado turvado pela fumaça das queimadas
Num dos momentos mais pungentes do clássico “O Senhor dos Anéis” (o livro, não os filmes), os hobbits que acabaram de desempenhar papel central na derrocada do demoníaco vilão Sauron voltam para casa em suposto triunfo… e descobrem que o horror que tinham derrotado chegara à sua amada terra antes deles próprios.
Árvores foram cortadas e queimadas pelo puro prazer da destruição, chaminés lançam fumaça no ar, eflúvios fétidos poluem o rio Brandevin. Para todos os efeitos, o lar deles virou uma cópia de Mordor, o reino de Sauron.
“Isto aqui é pior do que Mordor!”, exclama Sam, o hobbit cuja “estreita amizade com a terra”, característica de seu povo, é a mais intensa. “Muito pior, de certa maneira (...) porque é o seu lar, e você se lembra de como era antesqueficassetodoarruinado.”
Que o leitor me perdoe a aparente hipérbole, mas a sensação é de que eu passei as últimas várias semanas num lugar pior do que Mordor, precisamente no mesmo sentido expresso por Sam.
Com efeito, nos últimos tempos, não houve um dia em que o céu de São Carlos (SP) não ficasse turvado pela fumaça das queimadas de maneira irreconhecível. As nuvens viraram uma espécie de canja de cinzas, e o próprio ar à nossa volta às vezes parecia adquirir essa mesma consistência pastosa, com retrogosto de brasa. Até o Sol mudou de cor.
E olha que eu tenho lugar de fala quando o assunto é queimada. Passei a infância e adolescência vendo as cinzas da colheita de cana-de-açúcar emporcalhando os quintais do bairro onde cresci.
Nada do que eu vi nos anos 1980 e 1990, porém, é comparável ao que aconteceu neste ano, simplesmente porque a ignorância, a imprevidência e a canalhice de alguns dos meus conterrâneos fizeram com que o fogo devorasse não as plantações de cana que eram colhidas por esse método, mas algumas das poucas áreas de cerrado e mata de galeria que tinham sobrado por aqui.
A sopa de cinzas na qual temos nadado é feita com as árvores no meio das quais, meses atrás, era possível ter um vislumbre de como era o interior paulista antes de ser pisoteado pelos cascos de aço do agronegócio.
Que ninguém se engane: não se trata de conversa de ecochato, mas de questão de sobrevivência. Queimadas matam, e matam os mais vulneráveis à poluição atmosférica. E ainda trazem o bônus da desgraça de atrasar o fim da seca que as tornou possíveis
“Ah, mas é a pior seca da história do país”, dirão alguns. De fato, como mostrou o colega Phillippe Watanabe em reportagem recente, o cerrado do Brasil inteiro tem tido a pior temporada de queimadas desde 2012. “Ah, mas o cerrado é uma vegetação que evoluiu com o fogo.” Sim, só que fogo natural, causado por relâmpagos antes da temporada de chuvas.
No atual “momento Mordor”, sem nem sinal de tempestades com raios, quem está acendendo a fogueira é o ser humano —a intencionalidade, para quem ainda precisa respirar, pouco importa.
O que me enfurece é que a presença de duas das maiores universidades brasileiras (a USP e a UFSCar) aqui do meu lado é insuficiente para que o município aprenda a gerir seus recursos naturais de um jeito minimamente decente. E não é por falta de aviso. Dava para evitar essa hecatombe com um tiquinho de planejamento, vigilância e cérebro por parte do poder público.
Que ninguém se engane: não se trata de conversa de ecochato, mas de questão de sobrevivência. Queimadas matam, e matam os mais vulneráveis à poluição atmosférica. E ainda trazem o bônus da desgraça de atrasar o fim da seca que as tornou possíveis —já está demonstrado que as cinzas bagunçam a dinâmica da formação de nuvens. Ou a gente age, ou o glorioso interior paulista fica sem água para beber porque a especulação imobiliária resolveu usar o fogo para se livrar dos restinhos de cerrado.