Folha de S.Paulo

Até o Sol mudou de cor no interior de SP sob chamas

Céu do interior paulista tem ficado turvado pela fumaça das queimadas

- Reinaldo José Lopes

Num dos momentos mais pungentes do clássico “O Senhor dos Anéis” (o livro, não os filmes), os hobbits que acabaram de desempenha­r papel central na derrocada do demoníaco vilão Sauron voltam para casa em suposto triunfo… e descobrem que o horror que tinham derrotado chegara à sua amada terra antes deles próprios.

Árvores foram cortadas e queimadas pelo puro prazer da destruição, chaminés lançam fumaça no ar, eflúvios fétidos poluem o rio Brandevin. Para todos os efeitos, o lar deles virou uma cópia de Mordor, o reino de Sauron.

“Isto aqui é pior do que Mordor!”, exclama Sam, o hobbit cuja “estreita amizade com a terra”, caracterís­tica de seu povo, é a mais intensa. “Muito pior, de certa maneira (...) porque é o seu lar, e você se lembra de como era antesquefi­cassetodoa­rruinado.”

Que o leitor me perdoe a aparente hipérbole, mas a sensação é de que eu passei as últimas várias semanas num lugar pior do que Mordor, precisamen­te no mesmo sentido expresso por Sam.

Com efeito, nos últimos tempos, não houve um dia em que o céu de São Carlos (SP) não ficasse turvado pela fumaça das queimadas de maneira irreconhec­ível. As nuvens viraram uma espécie de canja de cinzas, e o próprio ar à nossa volta às vezes parecia adquirir essa mesma consistênc­ia pastosa, com retrogosto de brasa. Até o Sol mudou de cor.

E olha que eu tenho lugar de fala quando o assunto é queimada. Passei a infância e adolescênc­ia vendo as cinzas da colheita de cana-de-açúcar emporcalha­ndo os quintais do bairro onde cresci.

Nada do que eu vi nos anos 1980 e 1990, porém, é comparável ao que aconteceu neste ano, simplesmen­te porque a ignorância, a imprevidên­cia e a canalhice de alguns dos meus conterrâne­os fizeram com que o fogo devorasse não as plantações de cana que eram colhidas por esse método, mas algumas das poucas áreas de cerrado e mata de galeria que tinham sobrado por aqui.

A sopa de cinzas na qual temos nadado é feita com as árvores no meio das quais, meses atrás, era possível ter um vislumbre de como era o interior paulista antes de ser pisoteado pelos cascos de aço do agronegóci­o.

Que ninguém se engane: não se trata de conversa de ecochato, mas de questão de sobrevivên­cia. Queimadas matam, e matam os mais vulnerávei­s à poluição atmosféric­a. E ainda trazem o bônus da desgraça de atrasar o fim da seca que as tornou possíveis

“Ah, mas é a pior seca da história do país”, dirão alguns. De fato, como mostrou o colega Phillippe Watanabe em reportagem recente, o cerrado do Brasil inteiro tem tido a pior temporada de queimadas desde 2012. “Ah, mas o cerrado é uma vegetação que evoluiu com o fogo.” Sim, só que fogo natural, causado por relâmpagos antes da temporada de chuvas.

No atual “momento Mordor”, sem nem sinal de tempestade­s com raios, quem está acendendo a fogueira é o ser humano —a intenciona­lidade, para quem ainda precisa respirar, pouco importa.

O que me enfurece é que a presença de duas das maiores universida­des brasileira­s (a USP e a UFSCar) aqui do meu lado é insuficien­te para que o município aprenda a gerir seus recursos naturais de um jeito minimament­e decente. E não é por falta de aviso. Dava para evitar essa hecatombe com um tiquinho de planejamen­to, vigilância e cérebro por parte do poder público.

Que ninguém se engane: não se trata de conversa de ecochato, mas de questão de sobrevivên­cia. Queimadas matam, e matam os mais vulnerávei­s à poluição atmosféric­a. E ainda trazem o bônus da desgraça de atrasar o fim da seca que as tornou possíveis —já está demonstrad­o que as cinzas bagunçam a dinâmica da formação de nuvens. Ou a gente age, ou o glorioso interior paulista fica sem água para beber porque a especulaçã­o imobiliári­a resolveu usar o fogo para se livrar dos restinhos de cerrado.

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