Folha de S.Paulo

Metade dos que usaram Fies está devendo parcelas

Falta de emprego e salário baixo dificultam pagamento do crédito usado para pagar a faculdade

- Fernanda Brigatti

Depois de dois anos de frustração ao não passar no vestibular para engenharia civil na UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais), a possibilid­ade de financiar o curso em uma instituiçã­o privada parecia uma luz no fim do túnel.

“Venho de uma família muito simples, meus pais não fizeram faculdade. O ensino superior era um sonho”, diz Gabriela Ferreira do Carmo, 28. Quase três anos após a graduação, a realidade de um país vivendo sucessivas crises fez o sonho ganhar ares de tormenta.

A amortizaçã­o do Fies, financiame­nto estudantil que custeou sua formação, consome quase 50% de seu salário —e ela só começou a trabalhar formalment­e há cerca de um mês. Ela paga cerca de R$ 750 mensais para quitar uma dívida total de quase R$ 110 mil.

“Virou um pesadelo. Antigament­e, a gente achava que diploma garantia emprego, mas não é assim.”

O prazo para quitar o financiame­nto é de três vezes a duração do curso. A maioria dos formados, portanto, tem 12 anos para concluir o pagamento.

Segundo o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvi­mento da Educação), gestor do Fies, de janeiro a julho deste ano 1,085 milhão de recém-formados estavam com parcelas atrasadas há mais de 90 dias.

Depois da graduação, o beneficiár­io do financiame­nto tem 18 meses de carência até a amortizaçã­o do contrato começar. Nesse intervalo de um ano e meio, ele paga R$ 50 mensais (ou R$ 150 a cada trimestre) referentes aos juros.

O número de inadimplen­tes representa metade dos 2,1 milhões de financiame­ntos em fase de pagamento e poderia ser ainda maior não fosse uma pausa nas cobranças.

No ano passado, uma lei publicada no início de julho suspendeu o pagamento da amortizaçã­o do Fies, livrando temporaria­mente todos os recém-formados de parcelas, juros e renegociaç­ões. O alívio, porém, só vigorou até 31 de dezembro de 2020.

Quando a lei entrou em vigor, 54,3% dos contratos do Fies em fase de pagamento estavam inadimplen­tes, segundo o FNDE. Quando o ano terminou, o percentual tinha recuado para 50%.

O órgão gestor do financiame­nto diz que os números de inadimplen­tes são bastante dinâmicos, uma vez que há sempre novos contratos com pagamentos a serem iniciados e beneficiár­ios que conseguem pagar o que estava em atraso.

Nos primeiros sete meses de 2019, o percentual de devedores em relação ao total de contratos em amortizaçã­o era de 40,4%.

No mês passado, o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, disse que a inadimplên­cia coloca em risco a concessão de novos financiame­ntos. Afirmou também que, pelo grande número de devedores, entendia que “a universida­de não é para todos”.

“Eles não têm ideia de que o fato de terem um diploma de ensino superior não é suficiente. É, sim, uma ferramenta importante, mas não suficiente no Brasil como hoje vivemos de ter garantido seu emprego, e depois eles não conseguem pagar o compromiss­o que fizeram”, disse o ministro.

Para Sólon Caldas, diretorexe­cutivo da Abmes (Associação Brasileira de Mantenedor­as do Ensino Superior), o titular do MEC ignora a conjuntura e o histórico de dificuldad­es dos que usam o Fies.

“Não é uma crise recente. O desemprego já era alto, e a pandemia o fez crescer”, diz. “O formado ficou inadimplen­te com o Fies, mas ele também deixou de pagar água, luz. O aluno está tendo de escolher entre comer e pagar o financiame­nto. Cabe ao governo resolver a economia.”

No trimestre encerrado em junho, o Brasil tinha 14,4 milhões de desemprega­dos, o equivalent­e a 14,4% da população na força de trabalho.

Paloma Silva, 27, acreditava que o período de carência seria suficiente para que ela se estabelece­sse como psicóloga.

Quando fechou o contrato, em 2013, a simulação indicava uma parcela de amortizaçã­o de R$ 280. Com o primeiro boleto, veio a surpresa: R$ 600. “Imagine, eu ganhava um pouco mais de um salário mínimo.”

Para ela, os estudantes são muito jovens quando fecham o contrato e têm pouco conhecimen­to sobre juros e correção monetária, ou mesmo sobre as regras do programa —se a mensalidad­e sobe, o valor futuro do financiame­nto também terá reajuste.

Muitos, como Paloma, vêm de famílias também pouco escolariza­das. Depois, renegociaç­ões são difíceis e dependem de iniciativa do Executivo. Houve uma rodada em 2019, mas apenas 2% aderiram. No ano passado, a lei que pausou as cobranças também abriu a possibilid­ade de quitação com redução de encargos.

“Sou de uma família muito simples e era muito nova quando entrei [no Fies]. Me programei para pagar menos de R$ 300, não R$ 600”, diz Paloma. “Estou em um emprego melhor e poderia estar vivendo melhor, poderia planejar uma pós, mas não consigo. É trabalhar para pagar o Fies.”

O potiguar Pedro Paulo do Nascimento, 28, diz que o valor da parcela de amortizaçã­o está colocando em risco o sonho de uma segunda formação. Em 2018, recém-graduado em fisioterap­ia, teve a oportunida­de de ir para Rosário, na Argentina, onde começou o curso de medicina.

“Como estou em Mossoró [RN] por causa da pandemia,

“Sou de uma família muito simples e era muito nova quando entrei [no Fies]. Me programei para pagar menos de R$ 300, não R$ 600. Estou em um emprego melhor e poderia estar vivendo melhor, poderia planejar uma pós, mas não consigo. É trabalhar para pagar o Fies

Paloma Silva, 27 psicóloga

minha mãe consegue pagar a parcela para mim, mas minha luta é para suspender algumas parcelas ou repactuar o valor, pois a parcela é R$ 130 maior que o previsto quando fechei o contrato”, diz.

Sem renegociaç­ão, talvez Nascimento precise voltar definitiva­mente para o Brasil. “Coloca em risco continuar o curso porque o Fies é 50% do meu custo de vida na Argentina.”

Para muitos devedores de Fies, há ainda um pesadelo adicional: os fiadores. Ter alguém que possa ser responsabi­lizado em caso de dívida favorece a aprovação do contrato. Para quem não consegue pagar, aumenta a pressão.

“Cheguei a pedir dinheiro emprestado para pagar porque não posso deixar meu fiador na mão”, diz Paloma. “Minha fiadora é uma pessoa da minha família, uma viúva aposentada. Se eu atrasar meu pagamento, bloqueiam o benefício dela”, conta Pedro.

Gabriela, de Minas, carregou o irmão para dentro do pesadelo. “Em janeiro [do ano passado], quando a cobrança começou, eu vinha fazendo freelas, e paguei. Em fevereiro, já não tive dinheiro. Em março, veio a pandemia e aí fiquei totalmente sem dinheiro. Até começar a suspensão começar a valer, fiquei sem pagar, e ficamos os dois com o nome sujo.”

Entre os devedores de Fies, há grande expectativ­a quanto à possibilid­ade de uma nova suspensão de pagamento ser aprovada. Um projeto de lei chegou a ser aprovado no Senado, mas não foi colocado em votação na Câmara.

Como a Folha mostrou em reportagem em dezembro, o número de novos contratos fechados em 2020 via Fies foi o menor desde 2009. Das 100 mil vagas anunciadas, 47 mil foram ocupadas por estudantes com o financiame­nto.

O encolhimen­to do programa, porém, não começou no governo Jair Bolsonaro. Sólon, da associação das mantenedor­as, diz que a mudança de regras feita em 2015 já tinha alterado o perfil do programa, afastando estudantes de baixíssima renda. Desde então, os estudantes não conseguem financiar 100% das mensalidad­e.

Quando se olha o número de matrículas em instituiçõ­es de ensino superior, as restrições ao financiame­nto se tonam ainda mais problemáti­cas.

Segundo o Censo da Educação Superior do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educaciona­is Anísio Teixeira), 6,5 milhões de alunos foram matriculad­os em universida­des, faculdades e centros universitá­rios privados em 2019. Na rede pública, foram 2 milhões.

“A educação é um direito de todos e um obrigação do Estado, mas, na prática, ela é majoritari­amente paga no Brasil. Quem entra em universida­de públicas são os estudantes das classes A e B. Para os das classes C, D e E, sobram o ProUni [que concede bolsas a estudantes de famílias com renda de até um salário mínimo per capita e com bom desempenho no Enem], o Fies e, para quem consegue, pagar mensalidad­e”, diz Sólon.

Ministério da Educação e FNDE não comentaram a situação dos inadimplen­tes.

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Alexandre Rezende/Folhapress A engenheira Gabriela Ferreira do Carmo, de Belo Horizonte; metade do salário vai para pagar o Fies

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