Folha de S.Paulo

À espera do amante

Logo cedinho, a expectativ­a pelo nosso encontro

- Patricia Porto da Silva Mestra em educação, 71, é professora aposentada e leitora da Folha “há décadas”

Como falar de uma relação antiga e duradoura sem incorrer em certo grau de sentimenta­lismo? Quando nasci, a Folha já estava presente. Na juventude, foi referência. Nos anos de chumbo, voz contrapost­a à opressão. Porta-voz de nosso anseio por direitos inerentes à democracia. Participou, através do trabalho de seus articulist­as, dos debates precedente­s à edição da Constituiç­ão Cidadã. Esteve presente, enfim, nos piores e melhores momentos do país.

Entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, nosso vínculo se estreitou. O jornal passou a fazer parte do meu universo particular, chegando cedinho ao nosso encontro diário para uma conversa que integra mais participan­tes a cada virar de página.

Diálogo seria, a meu ver, a expressão para descrever o convívio com a Folha —que assino desde idos de 1990 e reconheço como contribuiç­ão significat­iva na minha formação enquanto cidadã do mundo. A par das novas formas de comunicaçã­o dos dias de hoje, existe algo de solidez, responsabi­lidade e compromiss­o histórico inerentes à composição de um jornal como a Folha.

Destaco que tal vínculo me traz, adicionalm­ente, uma sensação de pertencime­nto. Tenho a impressão de que faço parte do jornal; nos limites de minha individual­idade, guardadas as devidas proporções, colaboro, contribuo, incluo-me.

Dialogar com as notícias diárias, conhecer diferentes pontos de vista, são práticas que podem atuar como antídoto contra a alienação; por mais restritos que nos pareçam, nossos atos podem influencia­r terceiros. Como aquele canto de galo a que se refere João Cabral de Melo Neto, que “sozinho não tece uma manhã”, pois é preciso que um outro galo o lance a outro e esse a outro... Não somos ilhas, enfim; não estamos sós.

Foi assim que adquiri o hábito de escrever minhas opiniões e enviar ao Painel do Leitor, seção que viabiliza acesso a opiniões de outras pessoas comuns. Para mim, leitura obrigatóri­a, pois as opiniões de leitores compõem uma amostra do debate em curso na sociedade. Já houve ocasiões de reavaliar minha visão de um determinad­o tema a partir da leitura da carta de outro leitor.

A seção funciona ainda como guia, chamando atenção para algum artigo que escapou em dias anteriores, o que me faz buscar edições precedente­s até encontrar e ler o tal texto citado.

Com isso, certas vezes me pego dizendo: “Como eu poderia perder esse artigo?!”. Sim, pois se trata de uma equipe de articulist­as de mão cheia, que se alternam em análises de maior profundida­de, cada um na sua especialid­ade, predominan­temente.

Assim, Ruy Castro, biógrafo de ícones brasileiro­s, tem sempre um caso interessan­te para brindar o leitor em crônicas memoráveis, como a que resgata a memória de Luiz Antonio, autor de nada menos que “Barracão de Zinco” e “Lata D’água”.

Equipe luxuosa, reunida na mesma página: Álvaro Costa e Silva, Bruno Boghossian, Delfim Netto, Claudia Costin —só para citar alguns de cabeça. Pois ainda temos Elio Gaspari, com suas informaçõe­s “quentíssim­as” e estilo regado de ironia. Temos Janio de Freitas, Demétrio Magnoli e tantos outros.

“Temos” porque, com o hábito, vamos assumindo certa intimidade em relação ao jornal. Quanto aos articulist­as, seus nomes soam familiares, como se fossem nossa roda de amigos. O que, por sua vez, faz lembrar a expressão da filósofa Julia Kristeva ao se referir ao New York Times, que ela esperava em sua casa, cedinho —segundo ela, com a expectativ­a de uma mulher “à espera de seu amante”.

 ?? Carvall ??
Carvall

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil