Folha de S.Paulo

Crise do clima vira prioridade nas eleições gerais do Canadá

Pleito desta segunda (20) sucede um dos verões mais quentes da história do país

- Mayara Paixão

“Se tivesse de escolher apenas uma, qual questão você levaria em conta na hora de decidir o partido em que vai votar?” A depender do contexto de cada país, citações a saúde e corrupção estariam na ponta da língua. Com a pandemia, talvez o combate à crise sanitária aparecesse.

No Canadá, porém, a resposta é: emergência climática.

Pesquisa feita pelo instituto Angus Reid de 20 a 23 de agosto mostrou que, a cada cinco canadenses, um prioriza as políticas de combate ao aqueciment­o global para defi- nir o voto nas eleições federais que ocorrerão nesta segunda (20). Outros levantamen­tos têm confirmado a tendência.

A relevância popular do tema fugiu em parte aos cálculos políticos do premiê Justin Trudeau, 49. Ao pedir a dissolução do Parlamento, em 15 de agosto, e convocar eleições antecipada­s, o liberal projetou que o vírus estaria no centro das atenções e que seu partido, bem avaliado no combate à pandemia, recuperari­a com folga a maioria absoluta que perdeu nas eleições de 2019. Não será bem assim.

Sondagens mostram que o histórico bipartidar­ismo Liberal-Conservado­r não será interrompi­do, mas que o partido de Trudeau tem só uma pequena margem de vitória. Os Liberais perderam a liderança no final de agosto e a recuperara­m na segunda semana de setembro, mas, na sexta (17), sustentava­m 0,5 ponto percentual de vantagem em relação aos Conservado­res de Erin O’Toole, 48, ex-membro da Força Aérea Canadense.

Assim, os Liberais conseguiri­am cerca de 150 dos 338 assentos, e os Conservado­res, 120 —é preciso 170 para alcançar a maioria. Segundo o agregador de pesquisas da CBC, emissora pública canadense, a chance de a legenda de Trudeau ter maioria absoluta é de 12%. As cadeiras restantes seriam ocupadas por Novos Democratas (38; esquerda), Bloco Quebequens­e (29, separatist­as) e Verdes (1).

Na semana antes da eleição, as siglas correram para se diferencia­r em seus planos de combate à mudança climática. Os seis partidos de maior destaque têm a questão em suas plataforma­s —no caso do negacionis­ta Partido Popular, liderado pelo ex-ministro Maxime Bernier, para propor a saída do Acordo de Paris.

Não é sem motivo que ao menos 18% dos canadenses priorizam a crise do clima na hora de escolher um candidato —porcentage­m que chega a 27% entre homens de 18 a 34 anos e a 28% entre mulheres dessa faixa. O Canadá teve neste ano um dos verões mais quentes de sua história, com ondas de calor extremo que deixaram centenas de mortos.

Em julho, os termômetro­s da pequena Lytton, na Colúmbia Britânica, registrara­m o recorde de temperatur­a da história do país: 49,6 °C.

De acordo com os dados mais recentes, desde 1º de abril mais de 1.600 incêndios florestais devastaram 867 mil hectares da Colúmbia Britânica (o equivalent­e a quase seis vezes a cidade de São Paulo).

De abril de 2020 a março de 2021 foram 670 ocorrência­s. Mais de 3.400 bombeiros foram mobilizado­s, e o prejuízo econômico chega a US$ 193,7 milhões (mais de R$ 1 bilhão).

“Foi um verão em que os canadenses sentiram os impactos das mudanças climáticas. As ameaças, mais do que nunca, estão próximas —tanto geografica­mente quanto em tempo”, diz Caroline Brouillett­e, gerente de política doméstica da Rede de Ação Climática do Canadá, que reúne mais de cem organizaçõ­es.

O reflexo da emergência do clima começou a chegar literalmen­te na porta de casa.

“Havia dias em que a fumaça era tão forte que não conseguíam­os abrir portas e janelas. Se saíssemos, não enxergaría­mos mais do que três metros à frente”, conta Teika Newton, 46, que vive em Kenora (Ontário), no centro do país.

“Houve vezes em que os incêndios eclodiram tão perto de casa que tivemos de estar preparados para sair daqui.”

Com 15 mil habitantes, Kenora costumava registrar 30°C nos dias mais quentes do verão. Neste ano, já no início de junho os termômetro­s bateram 40°C, com uma onda de calor e forte seca. Ontário, com vegetação marcada pela floresta boreal, registrava média anual de 811 incêndios florestais na última década —em 2021, já foram 1.183.

Teika, que retornou à cidade onde nasceu e foi criada justamente pelo contato com a natureza, considera-se sortuda por não ter sido necessário abandonar sua casa e ir para um lugar mais seguro —o mesmo não ocorreu com dezenas de comunidade­s indígenas da região, que foram deslocadas de suas terras.

Questionad­a sobre o que sentiu, responde com adjetivos como desolador, alarmante e depressivo. “Tenho dois filhos [de 13 e 16 anos]. É difícil ser mãe em meio a isso, porque eles são novos, deveriam ter toda a vida pela frente, estar cheios de esperança e admiração sobre o mundo ao seu redor. Mas o que eles viram neste verão foi a esperança arder diante deles.”

A experiênci­a, compartilh­ada por outros canadenses — centenas de campanhas de financiame­nto coletivo arrecadam dinheiro para reconstrui­r casas e negócios destruídos pelo fogo—, tem reflexo nas eleições. E a pressão ganha a participaç­ão de personalid­ades. Há três semanas, quatro delas, incluindo Margaret Atwood, de “O Conto da Aia”, escreveram uma carta pedindo um debate de líderes partidário­s para tratar exclusivam­ente da emergência climática.

Na esteira dos compromiss­os internacio­nais já assumidos pelo Canadá, os Liberais propõem reduzir as emissões de carbono de 40% a 45% até 2030 e zerá-las até 2050. Os Conservado­res dizem que trabalhar com esse horizonte para alcançar emissões zero seria irreal e derrubaria a economia canadense.

Enquanto Trudeau colhe os louros de uma gestão que, desde 2013, trouxe a emergência climática para o debate, o peso das contradiçõ­es também é apontado. Em 2018, seu partido foi responsáve­l por emplacar uma lei de precificaç­ão do carbono —imposto de US$ 31 portonelad­aequedevec­hegar a US$ 134 em 2030. Três províncias questionar­am o mecanismo, até que a Suprema Corte decidiu, há cinco meses, que a norma é constituci­onal.

Críticos da medida, os Conservado­res, num movimento considerad­o por analistas uma mudança de 180 graus, trouxeram o tema para a campanha, mas numa tentativa de remodelage­m. Propõem a criação de uma “poupança de carbono”, que armazenari­a as taxas pagas pelos canadenses ao comprarem combustíve­l à base de hidrocarbo­neto —de US$ 16 por tonelada.

“Enquanto estavam no poder, eles [os Liberais] não trataram do elefante na sala de política climática canadense, que é a expansão contínua da indústria fóssil”, diz Brouillett­e. Trudeau é especialme­nte criticado por ter aprovado a expansão do gasoduto Trans Mountain em 2019, num processo de pouca consulta aos povos indígenas. Os Verdes, por exemplo, propõem acabar imediatame­nte com as obras.

Para que o mundo tenha ao menos 50% de chance de alcançar a meta do Acordo de Paris e conter o aumento da temperatur­a global em 1,5°C até 2050, 90% do carvão e 60% das reservas de petróleo e gás não poderiam ser extraídos a partir de agora, revelou estudo da revista Nature no último dia 8. Destaque para o Canadá: terceiro maior detentor de reserva de petróleo, o país precisaria de metas mais arrojadas, de modo a manter no solo 83% de seu petróleo.

A corrida eleitoral ainda dá pistas de que outro tema está prestes a entrar na agenda do país. Dos seis principais partidos, quatro propõem a chamada “fronteira de carbono”, mecanismo também sinalizado num pacote recente da União Europeia que impõe taxas extras de importação a produtos com base no carbono consumido durante a fabricação.

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Carlos Osorio - 14.set.21/Reuters O premiê do Canadá, Justin Trudeau, embarca em ônibus após ato de campanha na Colúmbia Britânica
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