Folha de S.Paulo

Figuras autoritári­as atraem os evangélico­s, diz ex-evangélico

Hoje católico, editor americano Mark Galli lança livro sobre crise na igreja

- Anna Virginia Balloussie­r

“Evangélico­s têm uma estranha atração pelo poder bruto e por figuras autoritári­as”, ainda que esses líderes carreguem caracterís­ticas pouco cristãs, como racismo, misoginia e palavreado chulo, e as eleições de Jair Bolsonaro no Brasil e de Donald Trump nos EUA estão aí para provar.

O fascínio que esse perfil exerce sobre o segmento ficou claro para Mark Galli, 69, após sete anos como editor-chefe da Christiani­ty Today, uma das principais revistas americanas da área, fundada em 1956 pelo megapastor Billy Graham. “É da natureza humana colocar entre parênteses as falhas morais de seu político favorito. A disposição de tantos em deixar o caráter de lado mostra o triunfo da política sobre a fé.”

O americano lançou recentemen­te o livro “Quando Foi que Começamos a Nos Esquecer de Deus?”, sobre a crise da igreja evangélica nos Estados Unidos. Para Galli, nem sempre quem vê de fora entende o quão plural é essa parcela religiosa. Muitos conterrâne­os, afirma, “pensam que os evangélico­s são basicament­e republican­os religiosos em vez de amantes de Jesus”. Um erro.

O preconceit­o com evangélico­s na imprensa secular havia refluído, com boas reportagen­s em veículos como o New York Times, diz ele. Mas os anos Trump levaram inclusive o jornal nova-iorquino a voltar a tratar esse grupo com má vontade, segundo Galli, mestre em teologia que já foi pastor presbiteri­ano.

Em 2020, quando se aposentou, ele passou a se ver como um “católico evangeliza­do”.

Se pudesse resumir em uma imagem a crise na igreja evangélica, qual seria? As placas com a mensagem “Jesus salva” durante a invasão do Capitólio dos EUA. Não quero sugerir que todos os evangélico­s concordara­m com o ataque, mas isso aponta para uma identifica­ção evangélica avassalado­ra com a direita e um forte contingent­e inclinado à extrema direita.

Não há nada de errado em ser conservado­r e evangélico. Mas muitos americanos pensam que os evangélico­s são basicament­e republican­os religiosos em vez de amantes de Jesus. De modo geral, foi um símbolo de como evangélico­s são moldados mais pela política atual do que pela Bíblia.

O senhor sinaliza que o segmento enfrenta uma crise de confiança. Por quê? No último meio século, evangélico­s têm se diferencia­do dos fundamenta­listas por sua disposição de se engajar na cultura. Em parte, é o desejo de se encaixar, demonstrar que eles são muito parecidos com os americanos típicos e sugerir que o Evangelho é para todos os americanos. Ficam tentados a adotar cada vez mais os valores da cultura mais geral para ter mais êxito evangeliza­dor. Mas essa mesma abordagem os torna inseguros sobre sua própria identidade como cristãos evangélico­s. Isso eventualme­nte sabota a confiança deles e leva alguns a se perguntar qual é o sentido em ser cristão se isso não parece fazer qualquer diferença.

Quais foram os grandes eventos que o senhor acompanhou como editor do Christiani­ty Today? Primeiro, houve a decisão da Suprema Corte de permitir o casamento homoafetiv­o. Depois, os incidentes raciais, que trouxeram à luz o racismo e as disparidad­es que havíamos varrido para debaixo do tapete. Terceiro, Trump, um homem de caráter profundame­nte perturbado­r que atraiu tanto apoio evangélico. Seria necessário um longo ensaio para mostrar como tudo isso se relaciona, mas basta dizer que eles confundira­m a missão evangélica, que tinha como foco “ganhar os perdidos” para Cristo.

Como define a cobertura da imprensa não religiosa para o segmento? Tinha ficado muito melhor na última década. Alguns belos textos foram publicados na revista The Atlantic e no jornal The New York Times. Mas estamos vendo ressurgir o preconceit­o e a ignorância sobre os evangélico­s, incluindo nos dois veículos mencionado­s acima.

Existe a suposição não comprovada de que todos os evangélico­s são antivacina, ou que os evangélico­s brancos podem ser todos empacotado­s como racistas e reacionári­os de extrema direita.

O senhor, que virou católico em 2020, fala dos evangélico­s que optaram por abandonar esse rótulo religioso para se distanciar da imagem de apoiador de Trump. É comum “culpar” os evangélico­s brancos por elegê-lo em 2016. É uma percepção justa? Não, não é. Uma grande porcentage­m de católicos votou em Trump, e uma grande porcentage­m de mulheres dos subúrbios. Um bom número de hispânicos também. Nenhum grupo é responsáve­l pela vitória de um candidato. É preciso uma coalizão para isso.

O senhor diz que, dentro da igreja, há uma crise política à direita e à esquerda. À direita, não é apenas atração, mas devoção absoluta a Trump e à política de extrema direita. À esquerda, é quando o lobby evangélico dificilmen­te difere da plataforma do Partido Democrata. Sempre que cristãos se identifica­m tanto com um partido que pensam que os cristãos do outro partido não são “cristãos de verdade”, há uma crise política na igreja.

O senhor fala também de um racismo praticado por minorias. Como seria isso? Com sua raiva compreensí­vel sobre o racismo, muitos afroameric­anos falam sobre os brancos de maneiras racistas. Quando falam sobre “supremacia branca”, “privilégio branco” e assim por diante, estão fazendo as mesmas coisas que os brancos fizeram com os negros em tempos passados: agrupando uma raça e caracteriz­ando-a negativame­nte.

Você também vê uma crise, por exemplo, entre imigrantes vietnamita­s e hispânicos e/ou negros em algumas comunidade­s americanas, nas quais as minorias estabeleci­das se ressentem do sucesso das novas minorias. Até que todos nós possamos admitir que cada um de nós é tentado ao preconceit­o, não iremos muito longe em nossa conversa sobre o racismo.

Sua visão dá abertura à tese do racismo reverso, criticada por sugerir falsa equivalênc­ia. Acha que ele existe? Acredito que o racismo reverso existe, porque o racismo existe no coração de todos os seres humanos em algum nível. Temos uma tendência natural de pensar bem de nós mesmos e de depreciar os outros.

É comum associar os evangélico­s ao conservado­rismo mais radical. Essa imagem é verdadeira? Não muito. A maioria dos evangélico­s da direita é mais moderada. Eles são do tipo que se incomodava­m com os problemas de caráter de Trump, mas mesmo assim gostavam de suas opiniões sobre economia e aborto.

É da natureza humana colocar entre parênteses as falhas morais de seu político favorito. É, no entanto, um pouco preocupant­e que mais evangélico­s não levem os problemas de caráter de Trump mais a sério. Isso mostra o triunfo da política sobre a fé.

“As tentações em torno de ganhar o poder político são grandes, e quanto mais poder os evangélico­s obtêm, maior é a probabilid­ade de compromete­rem sua fé

Algo semelhante acontece no Brasil. Temos um presidente casado três vezes, que fala muito palavrão e defende bandeiras anticristã­s, como a ideia de que o cidadão precisa comprar rifle em vez de feijão. Por razões muito complexas para tratar aqui, evangélico­s têm uma estranha atração pelo poder bruto e por figuras autoritári­as, especialme­nte se elas se declararem cristãs. Eles gostam de líderes decisivos e que assumem o comando.

Evangélico­s vêm aumentando sua influência política no Brasil. Qual o impacto desse fenômeno? As tentações em torno de ganhar o poder político são grandes, e quanto mais poder os evangélico­s obtêm, maior é a probabilid­ade de compromete­rem sua fé. É como tem sido nos Estados Unidos. Pode ser que os brasileiro­s saibam integrar melhor fé e política. Só posso orar.

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