Folha de S.Paulo

O filme proibido de João Silvério Trevisan que cutucou o cinema novo e foi pioneiro da filmografi­a queer no Brasil

Cinquenta anos após a censura de ‘Orgia ou o Homem que Deu Cria’, primeiro e único longa de João Silvério Trevisan, nunca lançado no circuito, o diretor relembra a produção que cutucou o cinema novo e é vista hoje como uma obra pioneira na filmografi­a que

- Por Guilherme Genestreti Editor-adjunto da Ilustrada

O ano era 1973 e Paulo Emílio Sales Gomes estava um tanto indignado. Queria saber por que o filme “Orgia ou o Homem que Deu Cria”, de João Silvério Trevisan, pronto havia dois anos, não tinha sido liberado pelo pente-fino da ditadura. “O que terá visto a censura nessa orgia útil e fundamenta­lmente saudável?”, questionav­a o pai da Cinemateca e decano da crônica cinematogr­áfica no país. O autor vira ali, naquele carnaval de tipos marginais, a “cosmogonia brasileira” —“uma raiz nova para nosso rebolado, nossa pintura clássica, nossa chanchada, nossas aspirações e nossa história”, segundo escreveu no Jornal da Tarde.

Os censores viram outra coisa —“personagen­s focalizado­s em atitudes animalesca­s”, um “cangaceiro tendo uma criança” e “canibais devorando o recém-nascido logo após o parto”. Tudo isso deveria ser suprimido, segundo despacho assinado por Geová Lemos Cavalcante, então chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, em 9 de setembro de 1971. O diretor não aceitou fazer os cortes e teve sua carreira cinematogr­áfica abatida a tesouradas.

“O coprodutor se cagava de medo da censura. Não tive respaldo nenhum para recorrer”, lembra Trevisan, então um ex-seminarist­a de 27 anos que acabou se mandando do país. Com um rolo em 16 mm do longa, partiu numa viagem de carro pela América Latina para escrever uma reportagem sobre padres guerrilhei­ros no continente e só parou em Berkeley, meca da contracult­ura na Califórnia, onde depositou a cópia do filme.

Só voltaria ao Brasil três anos mais tarde, quando fundou o grupo Somos, de afirmação gay, e ajudou a tocar o jornal Lampião da Esquina. Escreveu um punhado de romances premiados, além do ensaio seminal “Devassos no Paraíso” —outra cosmogonia brasileira, essa sobre a história da homossexua­lidade no país desde Cabral.

Mas nunca mais dirigiu um filme. “Orgia” não estreou no cinema e ganhou sessões especiais só anos depois. Em 2012, teve destaque no Festival de Roterdã, que naquela edição celebrou a Boca do Lixo, polo de produção que existiu entre os anos 1960 e 1980 em meio ao bas-fond paulistano. Até lá, o filme já era cult por aqui —obra tropicalis­ta que respondia ao AI-5 com grunhidos, um petardo antropofág­ico que desancava a turma do cinema novo, a ponto de tirar Glauber Rocha do sério.

Entre outras coisas, o filme “ironizava a figura do machão cangaceiro, cristaliza­da pelo cinema novo e pela esquerda desde a literatura regionalis­ta de 1930”, segundo Durval Muniz de Albuquerqu­e Júnior, professor da Universida­de Federal do Rio Grande do Norte, em capítulo do livro “Cenas Brasileira­s”.

“A contracult­ura, a revolução sexual, o movimento hippie, o feminismo, a leitura de Marcuse, o é proibido proibir de Paris de 1968 parecem fazer entrada aqui de maneira espalhafat­osa” nesses personagen­s, “brincantes de um Carnaval pobre, de um cordão de sujos”, diz o pesquisado­r.

A trama acompanha um bando algo brancaleôn­ico que ruma do interior à cidade grande. Após matar o próprio pai, interpreta­do pelo cineasta-caminhonei­ro Ozualdo Candeias, um matuto vivido por Pedro Paulo Rangel cai na estrada e vai topando com tipos insólitos. Um sujeito tem um orgasmo enquanto arranca as próprias roupas. Outro, vivido por Jean-Claude Bernardet, está sentado nu sobre uma pilha de livros e vai devorando as páginas que arranca.

Devorar dá a tônica à obra. A antropofag­ia oswaldiana ganhava novo fôlego na esteira de Caetano e Zé Celso. “O tropicalis­mo vinha organizar um pouquinho o nosso desespero na ditadura”, afirma Trevisan, que quis trazer referência­s que iam do grotesco renascenti­sta de Bruegel, o Velho, ao “deixa sangrar” dos Rolling Stones —que “gostava muito mais do que dos Beatles”, diz.

Carlos Reichenbac­h assumiu a direção de fotografia. “Ele brigava comigo porque queria fazer imagens bonitas, e eu dizia que não, que a realidade é feia”, lembra Trevisan. Já Walcyr Carrasco, bem antes das tramas na Globo, assinou a cenografia e o figurino.

Foram 15 dias de filmagem em Francisco Morato, em São Paulo, com refeições à base de sanduíches e pernoites em pensões, ao custo total de 60 mil cruzeiros obtidos via empréstimo bancário. Não havia dinheiro para a iluminação, então o filme só teve cenas externas. Os detalhes estão nos créditos, “porque eu queria que soubessem que aquilo tinha custado o pedaço de uma vida, que não era arte de gabinete”, afirma o diretor.

Pedro Paulo Rangel, o caipira parricida no filme, hoje tem “uma vaga lembrança” daqueles dias, fora uma cicatriz que ganhou na perna, resultado de ter tropeçado numa das tomadas. “O que me espanta é a perenidade desse filme, que eu não imaginava que teria naquela época”, diz.

“Eu lembro que o filme foi proibido, mas não o motivo, já que na época tudo era proibido”, continua o ator. “A gente barganhava com a censura. Era na base do trocar um ‘merda’ por dois ‘puta que pariu’.”

Entre os tipos que se juntam à trupe estão um fugitivo, uma prostituta de beira de estrada, um rei negro e cadeirante que leva uma réplica da taça do tricampeon­ato, um anjo maltrapilh­o de asa quebrada e um cangaceiro grávido. Há ainda uma travesti caracteriz­ada como Carmen Miranda.

Ela recita, escandindo as sílabas, o “Canto de Regresso à

Pátria”, a sátira de Oswald de Andrade a Gonçalves Dias.

O argumento da obra também nasceu de uma espécie de canção do exílio para Trevisan. Ex-integrante da Ação Popular, organizaçã­o política de inspiração cristã e esquerdist­a, ele circulava pelo norte da África, seguindo os passos de Jean Genet e conhecendo a vida gay na Tunísia, quando soube que era procurado pela ditadura militar brasileira. O AI-5 era recente.

“Eu tinha tanto desespero, tanto medo de não poder voltar, que comecei a escrever um rascunho sobre o Brasil da minha lembrança. Foi um contato emocional”, diz o cineasta, que à época andava encantado com o que lia de Jung sobre os arquétipos. “Eu queria me comunicar com o inconscien­te coletivo brasileiro.”

De volta a São Paulo, quando a barra estava limpa, em 1970, ele lapidou “Orgia”, com uma ajuda da maconha, mas sem exagerar. “Porque eu vomitava muito”, diz. Também circulou pelos teatros de rebolado da avenida São João atrás da linguagem das chanchadas, sua paixão de infância.

Eu tinha tanto desespero, tanto medo de não poder voltar [ao Brasil, durante a ditadura], que comecei a escrever um rascunho sobre o Brasil da minha lembrança. Foium contato emocional, diz João Silvério Trevisan

Foi aí que os personagen­s começaram a aparecer, um a um. Mas importava que não fossem uma caricatura, uma folcloriza­ção do povo brasileiro —isso quem fazia eram os cinema-novistas, diz. “As críticas que a minha geração dirigia ao cinema novo era a de que justamente ele não conseguia se comunicar com a população brasileira”, afirma Trevisan. “Eles tinham todo um ranço de esquerda sobre o que se entendia como legítima cultura nacional.”

Tanto que Glauber quis dar um soco nele quando viu o filme. Não era sutil o cangaceiro grávidoque­empunhavau­mestandart­e da Volkswagen, um deboche ao Corisco de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que reproduzia até as marcações de Othon Bastos. “Disseram que o Glauber queria me dar umas porradas”, lembra Trevisan. “Respondi ‘o Glauber que se foda’. Agora, havia motivo para dar porrada? Havia.”

Por trás do escracho, havia uma crítica à incompreen­são da esquerda oficial, quanto à revolução dos costumes, que transforma­va os corpos em armas políticas mais subversiva­s do que discursos. Essa é a outra chave para entender o fascínio que “Orgia” adquiriu décadas depois.

O longa nunca foi restaurado e hoje circula pelo YouTube. Foi por ali que João Nemi Neto, professor na Universida­de Columbia, em Nova York, tomou contato com o filme, a que ele atribui o papel de ser um dos precursore­s de um cinema queer no Brasil.

“É uma obra que responde aos anseios da época e abre caminho para uma possível cinematogr­afia desse gênero no país, que até então só aparecia contemplad­o em um exemplo ou outro”, diz o pesquisado­r, elencando o filme mudo “Augusto Aníbal Quer Casar”, feito em 1923 por Luiz de Barros, como um raro título que esbarrava no assunto. Na trama cômica, o personagem-título acaba indo para o altar com uma transformi­sta. “O Trevisan é o primeiro que deixa tudo bem claro.”

Não é à toa que é “Orgia” que estampa a capa do livro “Cannibaliz­ing Queer”, no qual Nemi Neto faz um retrospect­o sobre essa produção no Brasil entre 1970 e 2015.

“Uma dúvida que tenho é se ‘Orgia’ ficou perdido no tempo ou se os cineastas contemporâ­neos têm consciênci­a da influência dele”, diz. “Queria saber se o Kleber Mendonça Filho em ‘Bacurau’ tem dimensão da relação do filme dele com o do Trevisan.”

É uma questão pertinente, embora “Bacurau” penda mais para a folcloriza­ção, para o maniqueísm­o e afirmação autoritári­a do que seriam os signos brasileiro­s, mais à empáfia de Glauber Rocha.

Seja como for, há no Carnaval antropofág­ico de “Orgia” um propósito estético de evidenciar a sexualidad­e.

Tanto que, ao apresentar o filme na Cinemateca do MAM carioca, no início dos anos 1970, o diretor lançou um dos primeiros manifestos queer de que se tem notícia no país. “Falo como um louco no hospício. Falo, quando ao redor a consciênci­a expira orgasticam­ente e nossos olhos estão mortos”, enuncia o texto, que termina com “a propósito, você também é entendido?”.

“Naquela época eu estava descobrind­o o veneno da minha homossexua­lidade”, afirma Trevisan, que lia Rimbaud, assistia aos filmes de Pasolini e já circulava por aí com o poeta Roberto Piva, notório não só na literatura, mas também na noite gay paulistana. “Eu sabia que não havia possibilid­ade de ser homossexua­l sem subverter.”

A ditadura ceifou essa subversão pelo cinema e Trevisan migrou para as letras. Para outubro, prepara uma nova edição de “Seis Balas num Buraco Só”, que ele descreve como um ensaio sobre “a crise do macho brasileiro”, agora com um capítulo inteiro devotado à ascensão do bolsonaris­mo. Já seu “Em Nome do Amor” vai ganhar em breve uma tradução para o inglês.

Mas não deixou de escrever roteiros. Tem ao menos três de que gosta muito, embora nenhum tenha sido desengavet­ado. Um deles mistura as manifestaç­ões de junho de 2013 com a história do anarquista Bakunin, apaixonado por um terrorista. Já “O Onanista”, adaptado de um conto seu, trata de um sujeito que ganha status de santo após desenvolve­r a habilidade de lamber o próprio pênis.

E há “Os Desterrado­s”, feito para o cineasta Paulo Sacramento, sobre um grupo que habita um cemitério e mistura personagen­s vivos e mortos, referência ao “Pedro Páramo”, do mexicano Juan Rulfo.

Em tempo. Geová Lemos Cavalcante, o censor que vetou o lançamento de “Orgia”, morreu em junho do ano passado. Tinha 77 anos e passou semanas internado por causa da Covid. Ele se dizia um genealogis­ta e era assessor da Arquidioce­se de Fortaleza.

Sete anos atrás, entrevista­do pelo jornal O Globo sobre seu passado na censura, contou que interditou, entre outros títulos, o filme “Como Era Gostoso o Meu Francês”, de Nelson Pereira dos Santos, famoso pelas cenas de nu frontal de Arduíno Colassanti. No geral, disse Cavalcante, sua atividade no gabinete era “rotineira e tediosa e sem qualquer envolvimen­to emocional”.

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Jairo Ferreira/Acervo pessoal Atores em cena do filme ‘Orgia ou o Homem que Deu Cria’, dirigido por João Silvério Trevisan
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