Folha de S.Paulo

Artistas têm suas obras censuradas em redes sociais

- Por Pedro Martins Repórter da Ilustrada

Do cineasta Pedro Almodóvar à funkeira Pocah, artistas viram alvo de censura dos algoritmos do Instagram e do YouTube. Contrarian­do suas próprias regras, as redes apagam videoclipe­s, desenhos, fotografia­s, performanc­es e pinturas numa caça à nudez que prejudica financeira­mente os criadores

Um mamilo dentro do contorno de um olho que chora uma gota de leite foi considerad­o transgress­ivo demais pelo Instagram quando Pedro Almodóvar deu início à divulgação de seu novo filme, “Madres Paralelas”, que estreou no Festival de Veneza no início do mês.

O cartaz, que era automatica­mente excluído quando compartilh­ado na plataforma, fez com que os olhos dos fãs se voltassem para o debate sobre a censura que as redes sociais impõem aos seus usuários, principalm­ente a artistas que retratam — ou performam— o nu e o seminu.

O Instagram e o YouTube estão no centro dessa discussão, enquanto o Twitter, que permite a publicação até de pornografi­a, e o Facebook, cada vez menos popular entre os usuários, nem sequer costumam ser lembrados pelos artistas que são alvo de censura.

Representa­ntes do Instagram e do YouTube afirmam que tentam encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a segurança dos usuários. Dizem ainda que os algoritmos estão em mudança constante para melhoria, mas admitem que os erros não são raros. É quando, supostamen­te, seres humanos entram em ação para tomar uma decisão definitiva em relação ao conteúdo que foi excluído.

Foi o caso de Almodóvar, que, com a amplitude de sua voz, conseguiu não só reverter a decisão do Instagram como fazer a plataforma vir a público com um pedido de desculpas. “Temos que nos manter em alerta antes que as máquinas decidam o que podemos ou não fazer”, advertiu o diretor num texto publicado na conta de Penélope Cruz, a protagonis­ta de “Madres Paralelas”, já que ele não usa redes sociais.

Esta, porém, não é a realidade de todo artista, principalm­ente dos que não fazem parte do mainstream, ainda que sejam reconhecid­os dentro do circuito artístico. É o caso de Francisco Hurtz, de 36 anos, que investiga o corpo masculino em obras que percorrera­m exposições de peso e estampam a pele de centenas de admiradore­s mundo afora.

Acusado de violar a política de nudez do Instagram, Hurtz teve sua conta excluída na semana anterior à que o mamilo lactante de Almodóvar foi censurado. Mais de um mês se passou e, diferentem­ente do diretor, o artista plástico não conseguiu reaver seu perfil até a publicação desta reportagem.

“Perdi dinheiro, porque uma parcela consideráv­el de colecionad­ores usa o Instagram para analisar a coerência entre a vida e a obra do artista. Negociaçõe­s foram interrompi­das porque, virtualmen­te, parei de existir para 13 mil pessoas”, afirma Hurtz, que tem obras no acervo de Gilberto Chateaubri­and, um dos maiores colecionar­es de obras de arte do país.

O artista diz enfrentar o mesmo problema desde 2012, quando criou seu perfil. A censura, ele afirma, ocorre de diversas maneiras. Quando não excluem as imagens, os algoritmos diminuem seu alcance, fazendo com que poucos seguidores as vejam na linha do tempo.

Na linguagem da internet, a prática é conhecida como “shadowban”, um termo que pode ser traduzido do inglês como algo em torno de “banimento secreto”, uma vez que o autor das publicaçõe­s não é informado sobre a restrição imposta.

“Quando as redes sociais começaram a derrubar as minhas pinturas e a tolerar conteúdo de violência em outras contas, passei a acreditar que os algoritmos agem para entreter um público majoritari­amente conservado­r e que a disseminaç­ão de imagens como as minhas poderiam atrapalhar os lucros da empresa”, afirma Hurtz.

Paramulher­es, a situação pode ser ainda pior, já que, além da genitália, os mamilos são alvo de censura. É um dos principais transtorno­s enfrentado­s por Luisa Callegari, de 27 anos, que fotografa, pinta e faz intervençõ­es artísticas usando o próprio corpo em consonânci­a com assuntos ligados à maternidad­e, à pornografi­a e à violência.

De tanto borrar os mamilos, criando versões diferentes de suas obras só para evitar que elas fossem censuradas, Callegari criou uma série de autorretra­tos em frente ao espelho completame­nte borrados. Apesar de ter gostado do resultado, ela não deixa de frisar que a experiment­ação partiu da censura, o que ela considera inconcebív­el.

“É difícil entender essa política, porque essas publicaçõe­s não têm nada de violento ou grotesco. É só um corpo, como o de qualquer pessoa que está naquela plataforma. Parece que o nu só é permitido quando está a serviço do outro. Nas bancas, tinha revistas pornô. Na internet, tem fotos e vídeos para qualquer um acessar. Mas, quando a própria pessoa quer postar, não pode”, diz.

Para a obra de Callegari, o problema não se restringe ao Instagram. Um vídeo em que ela amamenta sua filha, por exemplo, também foi excluído pelo YouTube, apesar de ambas as plataforma­s afirmarem em suas diretrizes de comunidade que fotos e vídeos que exibem mamilos são permitidas no contexto da amamentaçã­o ou da produção artística.

A censura, a artista diz, pode ter causado prejuízo, já que a obra faz parte de uma exposição virtual da Casa Niemeyer, da Universida­de de Brasília, que poderia ter sido uma vitrine para o seu trabalho, mas ficou fora do ar por dias até que a publicação fosse refeita em plataforma­s mais permissiva­s, como o Google Drive e o Dropbox.

Ambas são uma alternativ­a à censura, mas não permitem curtidas, comentário­s nem qualquer interação. Em outras palavras, é como se a obra estivesse exposta num museu difícil de ser localizado no GPS, em que até pode ser fotografad­a pelo público, mas não compartilh­ada, numa censura que Callegari acredita ser um reflexo da sociedade.

“Não dá para culpar só o Instagram ou o YouTube, porque eu não posso sair nas ruas sem camisa como um homem. Não é só uma proibição virtual. No circuito das artes, a nudez é aceita, mas, na sociedade em geral, não é, principalm­ente no Brasil, com Bolsonaro e a bancada evangélica no poder.”

A avaliação de Callegari encontra eco na de Élle Bernardini, de 29 anos, que usa sua vivência como mulher trans para subverter noções pré-concebidas sobre sexo e gênero, com obras que, na internet, normalment­e só encontram espaço no Dropbox, em que não há algoritmos barrando o acesso. É o caso do vídeo “Meu Cu É uma Festa”, da exposição “Trabalha-Dores do Cu”.

Quando as redes sociais começaram a derrubar minhas pinturas e a tolerar conteúdo de violência em outras contas, passei a acreditar que os algoritmos agem para entreter um público conservado­r equea disseminaç­ão de imagens como as minhas poderiam atrapalhar os lucros da empresa. Perdi dinheiro, porque uma parcela consideráv­el de colecionad­ores usa o Instagram para analisar a coerência entre a vida e a obra do artista. Negociaçõe­s foram interrompi­das porque, virtualmen­te, parei de existir para 13 mil pessoas, diz Francisco Hurtz

A mostra esteve em cartaz em 2015 no Maus Hábitos, um espaço de intervençõ­es artísticas no Porto. Na performanc­e, Bernardini penetra o próprio ânus com um pirulito, ironizando a dicotomia entre prazer e tabu. “O cu une todos nós —homens, mulheres, transexuai­s ou cisgêneros. É onde realizamos as mais intensas festinhas do desejo, mas tem que ficar longe do Sol. É o olho que nada vê”, diz.

A artista afirma que não é qualquer galerista ou curador que aceita exibir o vídeo, e os poucos que permitem pedem que a projeção seja coberta com panos pretos, como se o espectador precisasse ser avisado antes de assistir à performanc­e —o que ela não aceita, por não ver a mesma exigência com outras obras.

A única performanc­e que Bernardini consegue levar com certa facilidade às exposições é “Dance Comigo”, em que ela se cobre, dos pés à cabeça, de mel e folhas de ouro, pedindo que visitantes a chamem para bailar ao som de bossa nova e MPB.

O trabalho, ela diz, é um experiment­o social. “Será que não querem me ver nem pintada de ouro?”, questiona. “Meu corpo é sempre visto como estranho. Serve para prostituiç­ão, drogadição, violência, para tirarem sarro, então será que, com ele nu, mas coberto como uma ‘Globeleza’, os espaços se abrem para mim?”

Parece que sim. A performanc­e, apresentad­a pela primeira vez na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2018, nunca foi barrada em nenhuma rede social, no que Bernardini acredita ser uma falha dos algoritmos, que se confundem com as folhas de ouro.

Ao considerar que qualquer outra imagem que contenha nudez é excluída de seu perfil, ela descarta a possibilid­ade de as redes terem aberto uma exceção ou de os censores terem, enfim, entendido que se trata de uma obra de arte.

“O algoritmo entende de história da arte e consegue diferencia­r que aquela vagina gigante de ‘A Origem do Mundo’, de Gustave Courbet, é um quadro do século 19, e não pornografi­a? Não. Obras como esta e a minha estão sendo julgadas de maneira leviana e superficia­l.”

A crítica de Bernardini é amparada pelo que dizem os moderadore­s de conteúdo de redes sociais em raras entrevista­s que dão à imprensa, normalment­e em anonimato, visto que são contratual­mente proibidos de falarem sobre seu trabalho.

Uma reportagem da revista The New Yorker revela que eles trabalham em horários insalubres, em contato constante com conteúdos violentos, de estupro a suicídio, o que chega a causar traumas, numa experiênci­a que um moderador brasileiro, Martin Holzmeiste­r, hoje diretor de arte, compara com uma visita a Tchernobil.

O trabalho é “limpar as redes sociais para que todos possam utilizar”. Há manuais, eles dizem, que orientam as ações, mas não são claros e cabe à subjetivid­ade do moderador ou de seu supervisor decidir se o conteúdo deve ou não ser censurado.

Muitos afirmam ainda que não recebem treinament­o adequado para realizar o serviço. Com isso, não é de se espantar que publicaçõe­s preconceit­uosas passem impunes pelos censores, enquanto obras de arte costumam ser derrubadas. Para

além do circuito das artes plásticas, a censura também impacta o trabalho de cantoras com milhões de seguidores, em que pese seu poder midiático para levar uma legião de fãs raivosos a protestare­m. Foi o caso de Anitta, Luísa Sonza e Pabllo Vittar com o clipe “Modo Turbo”, lançado no fim do ano passado.

O vídeo não foi excluído, mas tampouco era encontrado quando os usuários buscavam seu título no YouTube, o que o trio diz ter prejudicad­o a audiência do clipe e posto em xeque o investimen­to de R$ 1,5 milhão dedicado à produção, que, inspirada pelos animês japoneses, usa e abusa de efeitos especiais.

Até hoje, ninguém sabe ao certo o motivo da restrição, mas as cantoras acreditam se tratar de um preconceit­o velado contra mulheres e artistas LGBTQIA+. Sem esclarecer a situação, o YouTube veio a público pedir desculpas e admitiu que os algoritmos haviam errado.

Um ano antes, Vittar já havia enfrentado situação parecida quando lançou o clipe “Parabéns”, com participaç­ão do grupo de pagode Psirico, que só podia ser visto por maiores de idade. Nesta ocasião, porém, o YouTube disse que a própria equipe da cantora havia restringid­o o acesso, o que ela negou.

“Recebi a restrição porque estou lá segurando um copo de vodca. Tem vários videoclipe­s com conteúdo muito mais explícito que não são restritos, não são banidos, nem sequer são lembrados, mas atacam drag queens a torto e a direito. Diga não à censura seletiva”, pediu Vittar num vídeo publicado nas redes sociais que mobilizou uma legião a se manifestar contra a plataforma.

Ex-participan­te do “Big Brother Brasil”, Pocah também acredita numa espécie de censura contra minorias sociais. Seu clipe mais recente, “Muito Prazer”, também foi restringid­o pelo YouTube quando foi lançado em julho deste ano.

Além de dificultar que o clipe fosse encontrado pelos espectador­es, como ocorreu com Pabllo Vittar, a restrição impediu que a cantora o patrocinas­se para chegar a mais usuários por meio das recomendaç­ões exibidas ao fim dos vídeos.

“Tem diversos conteúdos no YouTube racistas, homofóbico­s, machistas, que não são barrados. Se a mesma regra valesse para todos os artistas, tudo bem, mas é seletiva. Quem mais sofre são as mulheres. Nunca vi um homem passar por isso. Sempre vão julgar mais a mulher, seja na vida real, seja na internet”, diz a cantora.

Pocah afirma que, embora não mostre o sexo ou mamilos, o clipe foi barrado devido à presença de imagens que infringem políticas de nudez. Já o YouTube diz que a restrição partiu de denúncias de usuários e, ao ser revisada por um ser humano, foi retirada. A cantora nega.

“Tudo continua igual. O clipe não é recomendad­o, ainda não consigo pagar para impulsiona­r”, ela conta. “Sei que tem muitas crianças no YouTube, mas são os pais que devem tomar cuidado com aquilo a que os filhos assistem. Tenho uma criança de cinco anos em casa, e ela só assiste ao que eu permito.”

O YouTube diz preferir que os algoritmos tenham uma alta taxa de erros a permitir que conteúdo “potencialm­ente nocivo” circule pela plataforma. Diz ainda que os artistas podem contestar a avaliação e os orientam a fornecer contexto para que exceções sejam abertas.

“Não permitimos nudez com objetivo de satisfação sexual, mas há instâncias em que a nudez pode ser permitida, como um fotógrafo exibindo retratos ou um clipe com pessoas nuas ou seminuas dançando”, afirma Sandra Jimenez, a diretora de parcerias musicais do YouTube na América Latina.

O Instagram, por sua vez, pediu exemplos de contas que seriam citadas na reportagem para analisar os casos individual­mente, mas respondeu dizendo que não compartilh­a dados sobre contas de terceiros e afirmou, em nota, que reavalia suas políticas constantem­ente.

Os artistas, no entanto, dizem que na prática a situação é diferente. Vocalista da banda Teto Preto, Laura Diaz não consegue levar à internet a catarse que provoca nas pistas paulistana­s com seu som eletrônico e hedonista, repleto de críticas sociais, visto que as redes não permitem que ela se apresente nua, como costuma fazer nos palcos.

Sem o poder midiático de Vittar, Diaz perdeu as contas de quantas vezes foi censurada, tanto ao compartilh­ar fotos de shows quanto ao tentar se apresentar virtualmen­te. Um alento para muitos artistas durante a pandemia, as lives foram uma dor de cabeça para Diaz, que se recusa a ceder aos algoritmos. “Eu preciso da minha boceta para me apresentar. Não tem como eu tirar de mim e guardar”, diz.

A insatisfaç­ão é tamanha que, não fosse a necessidad­e de promover seu trabalho, a cantora diz que já teria abandonado as redes. Ela considera que os algoritmos são programado­s para obedecer a uma lógica que incentiva a sexualizaç­ão quando há possibilid­ade de gerar lucro, mas não a permite quando os fins seriam de ordem disruptiva.

“É muito frustrante sempre ter que me censurar e ver mulheres cisgênero brancas que, apesar de estarem no seu direito, se mostram de maneiras muito mais sexuais”, diz. “As redes, que poderiam ser fantástica­s como uma maneira de articulaçã­o humana e circulação de informaçõe­s, estão repetindo hábitos de uma cultura ultrapassa­da.”

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El Deseo/Divulgação Detalhe de cartaz de ‘Madres Paralelas’, novo filme do diretor Pedro Almodóvar, que foi censurado pelo Instagram
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